Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Brasil deveria criar programa de pesquisa com ayahuasca

País tem larga experiência na ciência e no uso religioso, além da insanidade

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São Paulo
Desenho em amarelo e preto com edificações em favela
Ilustração de Raphael Egel - Arquivo Pessoal

Um abrangente artigo científico sobre efeitos da ayahuasca suscitou ao blog a seguinte questão: por que o Brasil não aproveita seu pioneirismo com essa bebida psicodélica para lançar um projeto nacional de pesquisa sobre seus potenciais benefícios à saúde?

O trabalho de revisão sobre o chá, também chamado de daime, saiu em versão digital no periódico European Neuropsychopharmacology, assinado por cinco pesquisadores do Brasil. O primeiro autor é Lucas Oliveira Maia. Na edição impressa da revista, o texto aparecerá em janeiro de 2023.

Em termos gerais, o artigo conclui que se sabe ainda muito pouco sobre como age a ayahuasca no cérebro e no organismo humano. O levantamento sistemático da literatura publicada indica que as evidências de efeito terapêutico são mais fortes no caso de depressão e abuso de substâncias (dependência química).

Existe, no entanto, um único teste clínico randomizado controlado por placebo (RCT) –o padrão de excelência em biomedicina– sobre ayahuasca e depressão . Foi realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e publicado em 2019; três dos autores da atual revisão são desse grupo, liderado por Dráulio Barros de Araújo.

O ensaio clínico contou com apenas 29 portadores de depressão resistente a tratamentos (30% dos pacientes que não melhoram com antidepressivos disponíveis). Mostrou melhora de sintomas já no primeiro dia, sustentada por uma semana.

É um dos trabalhos mais citados da ciência psicodélica nacional, que pôs o Brasil no terceiro posto de artigos de alto impacto da área, depois dos EUA e do Reino Unido. O destaque resulta de uma longa tradição de estudos com drogas psicoativas, iniciada com cânabis na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ayahuasca na USP de Ribeirão Preto.

Muito antes disso, ainda nas décadas de 1950/60, até o LSD chegou a ser pesquisado no Instituto de Psiquiatria da USP na capital. No Canadá e nos EUA, obtiveram-se resultados promissores com o ácido lisérgico no tratamento de alcoolismo. A proibição nos anos 1970, porém, abortou essa linha de investigação aqui e no mundo todo.

O tema de estudo voltou à baila com força a partir da virada do século 21, no que já se chamou de renascimento psicodélico. Centenas de testes clínicos estão em andamento no mundo; bilhões de dólares são investidos em empresas novas da área; cidades e estados dos EUA descriminalizam posse e uso de substâncias alteradoras da consciência, como a psilocibina de cogumelos ditos "mágicos".

O Brasil tem massa crítica científica e experiência acumulada na área graças à ayahuasca. Por ter uso religioso legalizado, as barreiras para pesquisa com o chá são menores do que noutros lugares. Centenas de milhares de pessoas tomam a bebida quinzenalmente em rituais do Santo Daime e da União do Vegetal (UDV).

Vários estudos compilados na European Neuropsychopharmacology lançam mão desse acervo populacional e científico, como levantamentos mostrando prevalência menor de abuso de álcool naquelas religiões. A UFRN mantém um extenso projeto de estudo da DMT (dimetiltriptamina, um dos compostos da ayahuasca) com modelos animais e seres humanos.

Faria todo sentido partir dessa base para construir um programa de pesquisa coordenando várias instituições para elucidar os mistérios que ainda cercam a beberagem. Estudos indicam que o daime parece promover a formação de novas conexões cerebrais (neuroplasticidade), mecanismo que parece estar por trás do efeito terapêutico em transtornos mentais, mas não se sabe bem como.

Outro campo importante a explorar são os efeitos adversos, como a indução de surtos psicóticos. São eventos raros, e o que se acha descrito na literatura sugere que já eram pessoas com histórico pessoal ou familiar de distúrbios, ou que faziam uso concomitante de outras drogas.

Mesmo provocando vômito e diarreia em alguns indivíduos, a ayahuasca é considerada segura, no geral, do ponto de vista fisiológico. Não se tem notícia de que desenvolva dependência. Mas seria fundamental realizar estudos com mais participantes, para entender melhor se não há pessoas mais suscetíveis na população, talvez por influência de fatores genéticos.

Um amplo programa de pesquisa com ayahuasca deveria incluir, ainda, as ciências humanas. A bebida chegou a nós por intermédio de dezenas de povos indígenas na Amazônia, dentro e fora do Brasil, e a ciência biomédica tem uma dívida com eles que é preciso equacionar, para o que podem contribuir os antropólogos, juristas, sociólogos e até filósofos.

Mais que isso, costumes e técnicas de uso cerimonial da ayahuasca podem ser guias para estabelecer protocolos de aplicação, caso o chá ou seus componentes venham a conhecer emprego terapêutico generalizado. Uma coisa é ingerir a substância num ambiente hospitalar ou laboratorial, inóspito para experiências emocional e espiritualmente profundas, quando não difíceis, o que pode contribuir para torná-las mais ameaçadoras do que se mostram em contextos rituais.

Com o governo federal que se extingue em menos de dois meses, um programa assim ambicioso e ousado de pesquisa seria impensável. Com a nova administração tomando posse em janeiro, alguém deveria tomar a iniciativa de propor algo como um Pronaya ou Prodaime –afinal, há quatro anos de danos à saúde mental e física dos brasileiros para superar.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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