Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Lucidez aos 84 anos do autor do 'Guia do Explorador Psicodélico'

Sai no Brasil tradução da obra do pioneiro James Fadiman

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Ilustração de Raphael Egel
Ilustração de Raphael Egel - @liveenlightenment

O plano era entrevistar James Fadiman, 84, durante a conferência Psychedelic Science 2023, realizada entre 19 e 23 de junho em Denver, Colorado (EUA). O autor do "Guia do Explorador Psicodélico", que acaba de sair no Brasil, tinha uma palestra programada, mas sua participação foi remota, inviabilizando o pedido de entrevista presencial feito por mensagem eletrônica.

Fadiman, no entanto, respondeu à mensagem e se disse surpreso com o lançamento da tradução em português, 12 anos depois. Agradeceu o envio da imagem da capa e aceitou fazer a conversa por vídeo, que aconteceu, por coincidência, na data do lançamento no Brasil, em 14 de julho.

O livro distingue três tipos de uso de psicodélicos: terapêutico (como apoio para psicoterapia), enteogênico (busca espiritual) e microdosagem (doses pequenas, que não desencadeiam viagens psicodélicas). A última modalidade está no foco da atenção de Fadiman desde então, motivando inclusive o preparo de um novo livro.

Não sei se é efeito de microdosagem, mas a lucidez e o bom humor do octogenário é cativante, como ao dizer que encontrar o "divino interior’ com enteógenos não implica tornar-se místico ou crente. Leia e confira:

Já pensou em atualizar o seu Guia? A edição brasileira, pelo menos, não faz justiça a tudo que aconteceu [na ciência psicodélica] desde 2011.

Na verdade, tenho várias notas sobre o que poderia ser ampliado, mas neste exato momento estou dedicado a terminar um outro livro, sobre microdosagem. Não sabíamos muito sobre isso na época. O que acontece com o Guia, e você é provavelmente um dos poucos que leu a coisa toda, é que as pessoas pegam só os dois primeiros capítulos, sobre como conduzir sessões.

Quando pergunto para uma plateia quantos experimentaram psicodélicos, 95% dizem que sim. Quando pergunto quantos fizeram isso num ambiente ["setting"] adequado, com um terapeuta etc., talvez 2% respondam que sim. Esses dois primeiros capítulos são extremamente úteis, porque ali está o método que ainda hoje em geral é empregado.

Se você considerar o manual que a Maps [Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos, ONG que milita pela regulamentação dessas substâncias], acho que eles pegam tudo que a gente sabia nos anos 1960 sobre como conduzir uma sessão [terapêutica] pessoal. Ter um homem e uma mulher presentes, inclusive.

Essa parte ainda é atual, e o livro segue vendendo. Meu editor diz que neste ano as vendas estão melhores que no anterior, e tem sido assim nos últimos anos.

Além disso, há coisa demais agora, pesquisa demais, comercialização demais que é desonesta. É uma situação muito complicada, hoje, e o livro terá de permanecer como está, como um documento histórico.

Em 2011 seu livro já falava numa mudança cultural do vento, a favor dos psicodélicos, o que não ficava tão claro na época para quem estava fora do campo. A conferência da Maps [Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos] em Denver, em junho, confirma que essa mudança já é irreversível?

Sim, é irreversível por duas razões. Uma está no reconhecimento de que a saúde mental está em apuros sérios e que novas ferramentas são necessárias. O outro lado é que o fato de essas substâncias serem fisiologicamente muito seguras não pode mais ser negado. O tipo de propaganda que o governo americano disseminou por muitos anos simplesmente não era verdadeira, e eles pararam de fazer isso.

No Congresso dos Estados Unidos, agora, há um grupo de uns poucos parlamentares que compõem a bancada psicodélica, um grupo de interesse especial voltado a tocar o governo para a frente, empurrando a Administração de Alimentos e Fármacos [FDA, a Anvisa americana] a reclassificar [essas drogas], e a FDA pela primeira vez publicou diretrizes sobre como devem ser feitas as pesquisas.

Isso é o que aconteceria com qualquer fármaco que parecesse benéfico.

O fato de não ser legal na esfera federal vai mudar. Em vários estados americanos [o uso de psicodélicos] está sendo descriminalizado. Austrália já tornou legal MDMA e psilocibina para uso médico em certas condições – eles são o modelo no momento do que o governo pode facilmente fazer, deixar a profissão médica trabalhar com isso.

Nesse sentido, é inevitável. Uma pressão adicional, que não estava presente em todos esses anos de clandestinidade: há ambição ["greed"], e ambição é uma força incrivelmente poderosa. Agora há lobistas nos governos, pressionando por novas leis, para ganharem dinheiro. Isso vai fazer as coisas andarem. Se isso é uma boa maneira ou não... é assim que as coisas são.

O dinheiro faz o mundo girar.

Certamente ele paga as pessoas para que continuem girando o mundo [risos].

Que tipo de uso, na sua opinião, tem mais probabilidade de se espalhar primeiro no público – terapêutico, enteogênico ou microdosagem?

Provavelmente, por estranho que pareça, a microdosagem. É segura, é simples, não assusta as pessoas.

Se a sua filha de 20 anos diz que gostaria de fazer microdosagem porque tem uma dificuldade de aprendizagem, [OK]... Agora, se disser que quer tomar psicodélicos porque está certa de que a religião em que foi criada é vazia e inválida, que muitos de seus valores são errados, isso sim encontrará mais resistência [como nos anos 1960].

Microdosagem é barata, segura, e está crescendo. Os números estão crescendo mais que os de doses altas, hoje totalmente sob controle da profissão médica.

Estamos falando também do retorno de usos rituais. Vou em seguida gravar um podcast com uma moça do México que é uma curadora ritual e que vem de uma tradição de microdosagem. Há também tradições de altas doses, mas é diferente. Se você recuar aos astecas, eles usavam microdoses para festas, mas também usavam altas doses para o que chamavam de pensamento longo e silencioso, e provavelmente também quando sacrificavam pessoas –mas isso é outra história.

Os benefícios da microdosagem já são aceitos como fatos científicos estabelecidos?

Não são um fato científico estabelecido. Basicamente todos os estudos mostram que as pessoas se sentem melhor, seu humor melhora, elas pensam um pouco mais claramente, mas são pessoas saudáveis. Há um estudo agora, creio que na Nova Zelândia, sobre depressão em quem usa microdoses corretamente. É mais fácil e seguro estudar pessoas saudáveis.

Além disso, a testagem convencional não é apropriada. Dá-se a droga uma única vez, e aí se parte para a medida. Microdosagem não funciona assim. Nem os ISRS [inibidores seletivos de recaptação de serotonina, classe de antidepressivos], que levam três a quatro semanas antes de exibir evidências de que são eficazes.

O que temos são dezenas de milhares de relatos individuais. O fato de um cientista numa universidade fazer as perguntas não torna as respostas nem um pouco diferentes do que se outras pessoas as fazem. O modo como se testam antidepressivos, 40 anos de pesquisa, é perguntar como a pessoa se sente –quando você chegou aqui disse que era um 8, agora que é um 6, e isso é considerado o padrão de pesquisa científica de altas doses e alto custo.

Com microdosagem, fazemos mais perguntas, com maior frequência e por um período maior de tempo, e conseguimos dados muito melhores. Houve dois estudos no ano passado pela página Microdose.me, com o grupo de Paul Stamets e outros, no qual perguntavam às pessoas pela internet se fariam um monte de testes a cada mês, por alguns meses, sobre seu esquema de microdosagem, e tiveram literalmente mais de 19 mil pessoas, acho. E também houve pessoas que fizeram todos os testes, mas sem microdosagem, o grupo de controle.

Encontraram que as pessoas, como eu disse, em geral se sentem melhor, com uma melhora geral que, se presume, resulta de um efeito anti-inflamatório. E aí temos as mudanças mentais que se associam com psicodélicos. Na verdade, temos uma quantidade maciça de dados entrando. A FDA diz, para as empresas que estão aplicando centenas de milhões de dólares, como eles precisam coletar os dados.

Cogumelos, por outro lado, que crescem em qualquer lugar exceto, talvez, a Antártida, já contam com milhares de anos de experimentação. É um modelo completamente diferente.

E há o exemplo de Oregon e Colorado, que estão legalizando o uso não médico de cogumelos.

Há descriminalização em dois níveis. Não é ilegal possuir e ingerir, cogumelos em particular. Por outro lado, tudo bem recebê-los administrados por profissionais. Colorado e Oregon são estados relativamente pequenos em população, mas há um projeto similar de descriminalização e de pesquisa, agora, na Califórnia, que seria um dos dez países mais prósperos do mundo em termos de renda [se fosse independente]. É um deslocamento radical, se isso ocorrer.

Como eu disse, isso está mudando na Austrália, mas não há ainda uma estrutura legal evoluída que inclua microdosagem como tal, exceto na Holanda e parte da União Europeia, onde microdoses estão disponíveis e se pode encomendar por correio. É algo que as pessoas têm o direito de obter.

Na outra ponta está a via da FDA, a busca de aprovação para uso médico. Acredita que psicodélicos possam seguir trajetória similar à da cânabis, primeiro uso médico e depois abertura para uso adulto?

Sim, porque quase todas as agências reguladoras do governo são médicas. Nos Estados Unidos, se alguém tem um fármaco, precisa gastar centenas de milhões de dólares em testes, montes de precauções e assim por diante.

Já se tem o que se chama de suplemento, a regra é: se não mata, pode vender. E no frasco tem de constar que a FDA impede que se diga qualquer coisa sobre benefícios do que a pessoa está tomando. Na realidade, não está sob a jurisdição do governo americano. É um sistema curioso. Pasta de dente, por exemplo, que tem de tudo dentro: enquanto não contiver algo listado como veneno, OK.

As leis são bem intrigantes. Mescalina no peiote está Anexo 1, é ilegal, não tem [supostamente] usos medicinais possíveis. Mescalina no cacto San Pedro está disponível, posso comprar pela Amazon.

A lei foi escrita sem conhecimento real do que estavam escrevendo –ouvimos falar de peiote, de LSD, vamos incluir. Não sabíamos das sementes de ipomeia, que contém LSA, não tão forte quanto LSD, mas bem forte. Não é científico, nem médico.

Muita gente critica o modelo de comercialização da cânabis, dizendo que a mercantilização dessa planta ancestral a tornou cara e elitista. Vê risco de que o marketing estrague psicodélicos também?

Sim, sim. Todos os erros de marketing serão cometidos com psicodélicos. Houve um artigo hoje de manhã sobre essa grande companhia Compass Pathways dizendo que não se deveria vincular psicodélicos com uso terapêutico, só vamos vender a substância.

O argumento é um pouco melhor, mas estão dizendo que podem desvincular o medicamento desse pessoal caro [psicoterapeutas] para poder ganhar mais dinheiro imediatamente. O que sei sobre psicodélicos em alta dose é que, a não ser que a pessoa saiba o que está fazendo, e mesmo que saiba, é muito útil contar com apoio ou ajuda.

Mesmo com microdosagem é benéfico contar com orientação ["coaching"], alguém para quem contar que teve insônia ao fazer microdosagem e o coach perguntar: A que horas está tomando. Depois do almoço? É muito tarde, vai atrapalhar seu sono, tome de manhã. Obrigado.

Alguns pesquisadores psicodélicos têm alertado para o perigo de ocorrer um novo revertério, como nos anos 1960/70. Mas agora temos os conservadores a favor, por causa da possibilidade de curar veteranos de guerra. Vê algum risco no horizonte?

Não. Nos anos 1960, os psicodélicos se tornaram ilegais não porque faziam mal a alguém, mas porque, entre outros efeitos, as pessoas não queriam ir ao Vietnã para morrer. Além disso, as pessoas não estavam em posições de educação, poder ou controle. Agora você tem na Maps, como pudemos ouvir [em Denver], o jogador mais valioso da NFL [Liga Nacional de Futebol americano] falando dos benefícios da ayahuasca. Isso é muito difícil de fazer retroceder.

Claro que haverá pessoas contra, e algumas delas terão algum conhecimento. Mas a maioria saberá só o que aprendeu de seus pais nos anos 1960, pais que não sabiam de nada, mas o governo dizia que era ruim.

Está um pouco tarde para um revertério. Há muita pressão para avançar vinda de pessoas com poder, com dinheiro, e o número crescente de pessoas dispostas a se levantar, figuras destacadas na cultura, incluindo vários parlamentares no Congresso. É uma outra era.

O livro menciona a ayahuasca um bom par de vezes. O que acha de líderes indígenas que protestam contra sua apropriação, patentes etc.?

O fato é que as pessoas [do Norte] que foram à América do Sul levaram tudo que puderam dos povos indígenas. Eles podem não ter tido a intenção de matar 90% com doenças europeias, mas não os trataram como seres humanos.

E isso continua valendo em boa parte da América do Sul, que ainda tem fronteiras de cor, visíveis e invisíveis. Quanto mais se parece com um europeu, mais vantagem se tem. Não tão óbvio quanto nos EUA, mas ainda assim.

O que estamos fazendo, e nisso fazemos bem, é retornar aos povos indígenas e perguntar: estariam dispostos a compartilhar conosco o que vocês aprenderam? E gostaríamos de não explorá-los, se pudermos evitar isso. No entanto, as forças da exploração são muito poderosas, é o comércio.

Uma empresa já tomou a iniciativa de dizer: isto é o que estamos fazendo, esta é a porcentagem que estamos devolvendo para os seguintes grupos indígenas. Não será o suficiente, não será [totalmente] adequado, mas é um reconhecimento de que estamos redescobrindo milhares de anos de trabalho prévio.

A ayahuasca é particularmente fascinante porque são duas substâncias, e as duas só funcionam juntas se forem fervidas por quatro ou cinco horas. Ainda me lembro de um antropólogo dizendo que descobriram isso por acaso, estavam experimentando com várias coisas da selva. É o que as pessoas podem mostrar de pior nelas.

A alternativa seria ir até os shipibos ou outra das centenas de povos da América do Sul que usam ayahuasca e perguntar: como vocês chegaram a isso? Eles diriam: as plantas nos contaram. Isso obviamente faz todo sentido, a não ser que você parta de uma visão ocidental cristã antiecológica.

Estamos nos voltando para o entendimento de que somos parte do mundo natural, não dominantes, até porque não estamos fazendo um bom trabalho, de todo modo.

Minha própria teoria é que a ayahuasca estava observando vários povos no mundo matando uns aos outros. Bem, é isso que eles estão fazendo há centenas de anos. Aí começaram a destruir a floresta tropical, e o espírito da ayahuasca achou que era hora de intervir –esse povo é realmente perigoso para a floresta, para as árvores, para os fungos.

Eu já fui um acadêmico, um professor, mas não acho que me encaixe mais nesse figurino.

Ayahusqueiros no Brasil dizem que a ayahuasca não lhe diz o que você quer ouvir, mas o que precisa ouvir.

Essa é a teoria também da psicoterapia. A pessoa vai ao terapeuta e diz que não quer mudar nada na vida, só sofrer menos, ter melhores relacionamentos e perder peso. Aí o terapeuta diz: não é tão fácil assim. A pessoa: estou desapontada.

A coisa maravilhosa com psicodélicos, e isso vale para altas doses de LSD, com o que tenho ampla experiência, é que a pessoa ganha uma noção de que toda a sua maneira de entender o mundo é limitada, e que dessa maneira não vai conseguir informação nova. É como americanos que vão para a América do Sul e falam inglês com pessoas que só falam espanhol e respondem que não conseguem entender, e aí os americanos falam a mesma coisa, só que mais alto.

Um amigo meu que entende de ayahuasca diz que você nunca sabe o que vai acontecer quando toma ayahuasca. É muito mais imprevisível do que LSD, porque não está lidando com química, mas com uma planta, uma professora, e ela está na planta.

Meu entendimento é que, quando se toma ayahuasca, e eu tomei em pequenas doses, não em rituais, ela fixa residência em você. Quando a ayahuasca o aceita como um possível aprendiz, isso [a residência] é parte do que está acontecendo. O mundo científico ocidental não tem uma opinião sobre isso porque há um acordo prévio de que isso não existe.

Uma última pergunta: tem alguma mensagem para psiconautas que permanecem ateus, mesmo após experiências espirituais profundas que possam ter vivido?

Tenho, sim. Os ateus sempre querem dizer que não acreditam na teoria judaico-cristã-muçulmana de uma divindade única, separada da pessoa. E eu concordo com eles.

Pessoas que tomam psicodélicos dizem, ei, eu sou parte da divindade, sou parte do mundo, sou parte da árvore. Eu me encaixo no mundo, e tudo é parte de um grande organismo.

Se alguém pergunta se acredito em Deus, respondo que é a pergunta errada. Acredito no que o mundo está divinamente cheio de amor em todos os níveis? Claro. Isso não é teologia, é experiência. Se digo que amo Paris, isso não faz de mim um crente – não acredito em Paris.

Minha mensagem para quem acredita que é ateu: não se preocupe com isso. Aproveite estar na natureza, e a natureza lhe fará saber que sempre estará na natureza.

Concordo inteiramente com isso, e permaneço ateu.

Eu também.

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