Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente saúde mental

Médico perde licença no Reino Unido e afeta imagem de psicodélicos

Ben Sessa, conhecido autor e psiquiatra, manteve relação com ex-paciente e foi suspenso por um ano

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São Paulo
Detalhe da capa do livro "O Renascimento Psicodélico", de Ben Sessa
Detalhe da capa do livro "O Renascimento Psicodélico", de Ben Sessa - Reprodução

O órgão fiscalizador de conduta médica do Reino Unido, Medical Practitioners Tribunal Service (MPTS), suspendeu terça-feira (5) por um ano a licença do psiquiatra Ben Sessa por ter mantido relacionamento amoroso com uma ex-paciente. A repercussão não é boa para a convalescente ciência psicodélica.

Sessa é uma celebridade no meio, tendo figurado com destaque no documentário da Netflix "Como Mudar sua Mente". A ele se credita a invenção do termo Renascimento Psicodélico, título de um livro seu de 2017 –aliás muito bom, está na bibliografia de meu "Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira" (Fósforo Editora, 2021).

Terá contribuído para a penalidade o fato de Sessa admitir má conduta ao se relacionar com a mulher. Ele interrompeu o tratamento antes do namoro, mas a paciente já havia tentado suicídio antes do tratamento. Voltou a fazê-lo depois de se relacionar com ele e morreu; o marido, de quem aparentemente estava separada, denunciou o psiquiatra, segundo Evans.

Os juízes do caso consideraram que Sessa falhou como médico em várias ocasiões. Para começo de conversa, apontaram que ele a atendeu certa vez num pub, enquanto a moça ingeria bebida alcoólica.

O psiquiatra, mesmo admitindo deslizes, alegou que a ex-paciente era persuasiva e atraía para si a responsabilidade por estarem envolvidos. Sessa usou em seu testemunho uma frase que ainda vai assombrá-lo, como anotou Jules Evans no Substack: "Esse capítulo [foi] um desvio [blip] trágico em minha carreira de resto excelente".

A trajetória do médico e pesquisador de fato chamou atenção. Na Universidade de Bristol, ele se associou a David Nutt, respeitado psicofarmacologista britânico, depois líder de um pioneiro grupo psicodélico no Imperial College de Londres.

Orgulhava-se de ter sido, como voluntário de pesquisa, a primeira pessoa a receber legalmente no Reino Unido, após 35 anos de proibição, uma injeção de substância psicodélica (psilocibina, no caso). Foi um dos fundadores da conferência psicodélica Breaking Convention e tocava uma clínica de cetamina em Bristol.

Era figura obrigatória em conferências, como a Psychedelic Science de 2023, evento com mais de 12 mil pessoas em que participou de duas sessões. Numa delas, o título era entusiástico: "Psicodélicos como os Grandes Disruptores: Reconstruindo o Futuro do Cuidado em Saúde Mental".

No Brasil, sua iniciativa de interromper o atendimento da mulher provavelmente o livraria de um processo. O Código de Ética Médica só prevê, em seu artigo 40, que é vedado ao médico "aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza".

Já o código de conduta de psicólogos dos EUA determina prazo mínimo de dois anos para que se inicie um relacionamento amoroso com ex-pacientes. Segundo o advogado Henderson Fürst, professor da PUC Campinas especializado em bioética, não existe norma desse tipo para psicólogos e psiquiatras no Brasil:

"Não há uma carência predeterminada nas regras deontológicas, embora a boa prática indique que se dê um prazo para configurar o devido encaminhamento a outro profissional e encerramento do vínculo terapêutico existente."

Fürst elogia o código de ética de psicólogos brasileiros, que recomenda em seu artigo 1º, alínea K: "sugerir serviços de outros psicólogos, sempre que, por motivos justificáveis, não puderem ser continuados pelo profissional que os assumiu inicialmente, fornecendo ao seu substituto as informações necessárias à continuidade do trabalho".

Não há muita dúvida de que o caso Sessa pode contribuir para manchar a reputação da medicina psicodélica rediviva. O campo já se debate com alguns casos de abuso sexual em terapia apoiada por psicodélicos com potencial para originar um revertério na imagem pública até aqui positiva.

Destaca-se o evento rumoroso de uma canadense que denunciou em 2021 o terapeuta Richard Yensen e sua mulher, Donna Dryer. Em 2015 a paciente havia participado como voluntária de um teste clínico de fase 2 sobre MDMA (ecstasy) para tratamento de estresse pós-traumático, durante o qual teve relações sexuais com Yensen com conhecimento de Dryer.

A denúncia tem peso simbólico por se tratar de abuso ocorrido na série de estudos que embasaram o pedido de autorização de MDMA apresentado à agência de fármacos dos EUA, a FDA, que deve tomar uma decisão em agosto. Caso aprovada, será a primeira psicoterapia com apoio de substância psicodélica após meio século de proibição.

A série de testes clínicos com MDMA foi patrocinada com recursos filantrópicos por uma ONG, a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês). A organização concluiu que houve desvio ético de Yensen e Dryer e os desligou de seu quadro de credenciados para conduzir ensaios clínicos.

Não há dados sobre quão comum é esse tipo de ocorrência. Algumas poucas como essa e a de Sessa poderiam, em princípio, abalar um esforço árduo de reabilitação do campo com lastro em pesquisa clínica e científica.

A psicodelia sempre esteve associada com a libertação sexual dos anos 1960, uma revolução no comportamento que decerto contribuiu para a reação conservadora por trás da Guerra às Drogas declarada por Richard Nixon em 1971. A duras penas a ciência psicodélica vem buscando desvincular-se da contracultura, e o próprio Sessa já deu declarações de distanciamento em relação aos "hippies".

Mesmo que não prevaleçam excessos moralistas do conservadorismo, há muitas e boas razões para manter o sexo fora da relação terapeuta-paciente e sua assimetria estrutural de poder. Mais ainda quando o tratamento envolve o uso de substâncias que tiram a pessoa tratada de seu estado normal de consciência e a deixam vulnerável a abuso.

É conhecido o fato de psicodélicos tornarem muito sugestionável quem faz uso deles. Sob seu efeito tudo parece real e fazer mais sentido, mesmo as imagens e noções mais disparatadas. Fica fácil para médicos ou psicólogos –ou xamãs e curandeiros– conduzirem a pessoa a atos sexuais, sob pretexto de cura.

Não se trata aqui de julgar e condenar Sessa, que já teve o trágico affair apreciado por quem de direito no Reino Unido. Que ele sirva ao menos de motivação para uma discussão aberta sobre os riscos envolvidos em psicoterapia apoiada por psicodélicos e para a adoção de normas específicas de prevenção à interferência do sexo num tratamento promissor voltado a desfazer traumas, e não engendrá-los.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

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