Voltaire de Souza

Crônicas da vida louca

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Assalta de uma vez

A criminalidade da criança e do adolescente reabre a questão da maioridade penal

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Crise. Fome. Desespero.

Nos supermercados, é tempo de soro de leite e pele de frango.

Nas ruas, é tempo de coberta de papelão e briga por espaço na marquise.

No centro de operações policiais, o capitão Morretes não ignorava os fatos.

--Culpa da esquerda, pô.

Ele apagou o cigarro no cinzeirinho de caveira.

--Primeiro, pararam a economia toda com essa invenção da pandemia.

O 38 esperava quietinho ao lado do telefone.

--Depois, não deixam o nosso presidente trabalhar.

O Brasil se prepara para o 7 de Setembro.

--Hora da virada, minha gente.

O mapa de Copacabana se estendia diante dos olhos do oficial.

--Vamos ter agentes localizados em pontos estratégicos.

Morretes acendeu outro cigarro.

--Aí quero ver quem aparece com esse papo de democracia.

Ele estava começando a gritar.

--Democracia só para eles? Como assim?

Foi quando tocou o telefone.

Ligação externa.

A voz era de criança.

--É da polícia?

Morretes disse que sim.

Lisânio tinha cinco anos. E um pedido.

--Não tem comida em casa...

Morretes aguçou a audição treinada.

--Esse golpe é novo.

Todos conhecem a história do falso filho sequestrado.

A vozinha fica gritando "papai" e pedindo resgate.

Morretes explica.

--Típica chamada telefônica com origem em estabelecimentos públicos de detenção.

Lisânio insistia.

--A gente está três dias sem comer.

O tom de voz de Morretes foi firme. Seco. Educativo.

--Desliga essa joça que eu sei de onde tu tá telefonando.

Ele desconfiava de um presídio.

--É Bangu Quatro, né?

Lisânio não entendia.

--Tô com fome...

--Então vai trabalhar, moleque.

--Eu?

--Tu mesmo, vagabundo.

--Mas...

Morretes teve um momento de compreensão.

--Bom. Tudo bem. Então faz o seguinte.

Ele respirou fundo.

--É contra os meus princípios. Mas em todo caso...

O conselho veio num grito.

--Rouba, pô. Assalta, caraca.

Ele bateu o telefone.

--Aí eu prendo esse babaca de uma vez.

Há quem recomende o fuzilamento imediato.

--Aí acho melhor esperar que fique maiorzinho.

É a tal da maioridade penal.

Em certa medida, são boas as leis do nosso país.

O problema está mais na interpretação.

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