Voltaire de Souza

Crônicas da vida louca

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Voltaire de Souza
Descrição de chapéu forças armadas

Um coração de isopor

Em tempos de blindado e de canhão, as plumas e paetês se recolhem à retaguarda

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CORAÇÃO DE ISOPOR

Ordem. Autoridade. Pátria.

Avançam os preparativos para o Sete de Setembro.

Luizito apoiava a ideia.

--É a chance do Bolsonaro, pô.

No Bar e Sinuca Bola Preta, os amigos discordavam.

--Esse troço de desfile militar é legal, mas...

Luizito cuspiu um caroço de azeitona.

--Podem parar. Já sei o que vocês vão dizer.

O sorriso do rapaz exibia superioridade.

--Vocês acham que aqui no Rio, a gente gosta mesmo é de samba.

--Pois é, Luizito. Ainda mais você... que é carnavalesco... que mania de militar é essa?

O rapaz já tinha idealizado diversos desfiles de escola de samba.

--E agora fica se interessando em tanque e veículo blindado?

Era o momento de revelar alguns segredos.

Luizito tomou um demorado gole de cerveja.

--Estou namorando um oficial da cavalaria.

--Bom. Então...

--Lindo. Educado. Me protege.

Quem, nesta situação de tanto crime e insegurança, não gostaria de proteção militar?

Luizito continuou.

--Sabe do quê? Ele me consultou sobre o desfile.

O guardanapo de papel se preencheu com rápidos traços de canetinha hidrocor.

--O coração do D. Pedro, por exemplo.

--O que é que tem?

--Vamos fazer uma alegoria. Um coração gigante de isopor e fibra de vidro.

--Para pôr no desfile?

--Mas é surpresa, pessoal. Não contem para ninguém.

Outras ideias estavam engatilhadas na fértil mente do carnavalesco.

--Uma ala com sósias do D. Pedro.

Quarenta jovens modelos e seus respectivos cavalos já tinham sido contatados.

--E mulher? Vai ter mulher?

--Ala das cortesãs. Ala das vivandeiras. Ala das empresárias.

Luizito queria reproduzir o célebre quadro da Independência.

--Carros de boi. Apoteose do agronegócio.

O celular interrompeu os sonhos do rapaz.

--Luizito. Sou eu. O Adonias.

--Fala, meu capitãozinho gostoso.

--Nossos planos para o desfile... foram rejeitados pela Comissão de Preparativos Patrióticos.

--Mas, Adonias...

--Pressão dos evangélicos, Luizito.

--Puxa... mas aí vai faltar alegria... sonho... paetê.

O suspiro de Adonias ouviu-se do outro lado da linha.

--Quem falou em paetê, Luizito...?

Adonias foi curto e grosso.

--Tanques, Luizito. Blindados. Veículos táticos.

--Não vão usar nem o coração de isopor?

--O momento, Luizito, é de chumbo grosso e ferro na boneca.

--Bom. Tudo bem então. Eles mandam, você obedece.

--Ah, não enche, Luizito.

A tarde caiu com desânimo no Bar e Sinuca Bola Preta.

O namoro de Luizito e Adonias esfriou bastante.

--Assim... ficou na base da medida provisória. E dos atos de emergência.

Corações se preservam no formol.

Mas, em tempo de canhão, canetinha colorida não tem vez.

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