Descrição de chapéu dinossauro

Araripe, maior sítio paleontológico do Brasil, tenta coibir tráfico de fósseis

Patrimônio com mais de 110 milhões de anos é vendido no exterior por centenas de milhares de dólares

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Crato (CE), Nova Olinda (CE) e Santana do Cariri (CE)

A bacia do Araripe, localizada entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, abriga o maior sítio fossilífero do país. É lá que fósseis de animais e plantas que viveram há mais de 110 milhões de anos são encontrados com um grau de preservação excepcional, comparável apenas a algumas escavações na China e na Alemanha.

Porém, apesar da exuberância, a região enfrenta há décadas diversos problemas estruturais, a começar pela lapidação recorrente do patrimônio fossilífero, destinado para outros países.

São espécies de dinossauros, pterossauros, aranhas, insetos, peixes, anfíbios, lagartos e dezenas de outros organismos que saem do Brasil e vão parar em coleções particulares ou científicas em diversos países.

Pedreira Dois Irmãos, em Nova Olinda, interior do estado do Ceará - Eduardo Anizelli - 27.nov.21/Folhapress

Os principais destinos são a Alemanha, a França, os Estados Unidos e o Japão. O Museu Americano de História Natural, em Nova York, possui a maior coleção de peixes do Araripe no mundo: são dezenas de milhares de exemplares. E quem quiser estudar os pterossauros do Brasil deve procurar coleções em museus na Alemanha, que abrigam a maior concentração desses fósseis.

Já os paleontólogos que desejem visitar o Araripe vão encontrar condições precárias de trabalho, uma infraestrutura reduzida e dificuldades para achar as peças para estudo.

A formação da bacia do Araripe se deu há pelo menos 400 milhões de anos, entre os períodos Ordoviciano e Devoniano. As demais rochas que formam a bacia possuem idade mais recente, que vai do Jurássico Superior, há cerca de 150 milhões de anos, ao limite do Cretáceo Inferior com Superior, há aproximadamente 100 milhões de anos.

São dessa idade os três principais estratos rochosos que conservam a maioria dos fósseis do local: a formação Crato, o membro Romualdo e a formação Santana. As rochas que contêm os fósseis da formação Crato são caracterizadas por lâminas calcárias (lajes) e são, por isso, muito exploradas pela indústria de piso e móveis —é durante essa atividade de mineração que são encontrados os fósseis.

Os nódulos (partes duras da rocha) do membro Romualdo preservam bem estruturas moles dos seres que lá viveram, por causa de uma série de reações químicas e da liberação de enxofre pela atividade bacteriana que ocorre ao longo do processo de fossilização. Assim, os organismos ficam preservados em uma espécie de "Kinder Ovo" no meio do paredão rochoso.

Fósseis do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, no interior do estado do Ceará - Eduardo Anizelli - 27.nov.21/Folhapress

Devido a essa condição única, asas de pterossauros são encontradas preservadas tridimensionalmente, e plantas e insetos podem ser descobertos ainda com pigmentos e partes moles em bom estado.

O valor científico excepcional desses fósseis, portanto, faz com que sejam ofertados por valores que chegam até centenas de milhares de dólares em leilões e sites de venda fora do país, passando por um caminho que envolve a descoberta nas pedreiras, a mão de atravessadores, os compradores internacionais, até chegar a colecionadores particulares e pesquisadores de museus estrangeiros.

Recentemente, a publicação do primeiro dinossauro não aviano com penas da América Latina, o exótico Ubirajara jubatus, levou a uma mobilização pela repatriação do fóssil que saiu ilegalmente do país e foi para o Museu de Karlsruhe, na Alemanha. Após forte pressão social, a revista científica Cretaceous Research "cancelou" a publicação do artigo, mas o museu alemão disse que não vai devolver o dino.

A questão maior que envolve esse e outros exemplares em coleções no exterior é que os fósseis são considerados patrimônio da União, desde a criação de um decreto-lei de 1942 que proíbe sua venda e retirada sem autorização.

A exploração dos fósseis só pode ser feita mediante licença para coleta —para pesquisadores e instituições de pesquisa— expedida por órgãos legais, mas o contingente de fósseis do Araripe em diversos países no mundo revela como essa legislação somente não consegue controlar o problema.

Além disso, os estrangeiros contrapõem a lei brasileira com legislações dos próprios países —a convenção de 1970 da Unesco que legisla sobre os bens culturais, históricos e de biodiversidade das nações não foi assinada por todas as partes e, portanto, não vale em alguns territórios.

Por conta disso, paleontólogos brasileiros e a Justiça buscam agora a recuperação desse patrimônio fossilífero, dizendo que os países não respeitam a lei vigente. Desde 2015, o Ministério Público Federal do Ceará tenta a repatriação de quase mil fósseis do Araripe apreendidos na França, no porto de Le Havre.

Segundo o procurador Rafael Ribeiro Rayol, responsável pela operação, os fósseis saíram em contêineres como se fossem quartzo. O destino: uma empresa na cidade de Gannat, na França, chamada Eldonia.

"O problema é que na Europa não é ilícita a comercialização de fósseis, e por isso os materiais são vendidos abertamente, mas como nossa legislação proíbe desde 1942, ou seja, há mais de 80 anos, é sabido que os fósseis saíram ilegalmente", afirma Rayol.

Dono da Eldonia, para quem seriam mandados os 998 fósseis mascarados como quartzo, o paleontólogo François Escuillié se defende dizendo que o mercado de venda de pedras preciosas não é proibido e as rochas valem muito mais do que os fósseis.

"Há um paradoxo em uma legislação que não proíbe a retirada e venda das suas pedras preciosas, que valem dezenas de milhões de dólares no exterior, mas condena a retirada dos fósseis", diz.

Além dos contêineres, diversos fósseis são levados por atravessadores em caixas, muitas vezes com autorizações para transporte de "rochas e pedras preciosas", denominação genérica que pode incluir os fósseis.

Em geral, um fóssil raro de anfíbio ou ave é vendido por cerca de R$ 3.000 pelos mineradores. Os espécimes mais raros, como de dinossauros ou pterossauros, chegam, no máximo, a R$ 15.000. Na Europa, os mesmos fósseis são vendidos pelos atravessadores por de US$ 30.000 a US$ 300.000 (cerca de R$ 150 mil a R$ 1,57 milhão).

Uma das figuras mais polêmicas quando se trata dos fósseis do Araripe, o paleontólogo britânico David Martill, da Universidade de Portsmouth (Reino Unido), diz que o problema dos fósseis brasileiros não são os paleontólogos estrangeiros que retiram ou recebem esses materiais lá fora.

"Há uma fiscalização frouxa no país, e os fósseis saem em contêineres contendo milhares. A pergunta é: quem deixa esses contêineres saírem?", indaga, dizendo que sempre levou material fóssil para a Inglaterra com autorizações dos órgãos legais.

Nos últimos anos, o MPF (Ministério Público Federal), junto à Polícia Federal, reforçou as operações para fiscalizar o tráfico internacional, com ações nas pedreiras, controle de passaportes e rastreio de telefones.

"O processo de mineração hoje está em sua maioria regularizado, mas fechamos no passado muitas pedreiras clandestinas. É nesse ambiente que os mineradores acabam encontrando os fósseis e guardando para comercializar de forma clandestina, pelos mais variados preços", afirma Rayol.

"A atividade de retirada dos fósseis não é ilegal, mas um trabalhador que encontra os fósseis deve separar, comunicar e entregar às autoridades", completa.

Recentemente, o laboratório de paleontologia da Urca (Universidade Regional do Cariri) começou um trabalho com a Polícia Ambiental para coletar de duas a três vezes por semana o material fóssil encontrado nas pedreiras. Em geral, são fósseis considerados de menor importância científica.

"Mesmo com a coleta, sabemos que há muitos fósseis que vão para fora, via Fortaleza ou São Paulo", afirma Antônio Álamo Saraiva, paleontólogo e professor da Urca.

O material recolhido vai para o laboratório de Saraiva na Urca ou para o Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, ligado à universidade.

A criação, em 2006, do Geopark Araripe, reconhecido hoje pela Unesco como sítio de patrimônio da humanidade, trouxe mais visibilidade à área da paleontologia na região, mas a falta de recursos dificulta o progresso científico local.

"Se tem o Geopark aqui, bem ou mal temos a avaliação a cada quatro anos da Unesco, e se os critérios para manter o parque são a defesa do patrimônio geológico, como podemos deixar continuar a situação de retirada dos fósseis?", questiona Saraiva.

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