Descrição de chapéu dinossauro

Leilão de T. rex 'Frankenstein' reacende debate sobre comércio de fósseis

Exemplares raros correm o risco de se tornarem inacessíveis a pesquisadores

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T. rex Trinity será leiloado na Suíça em abril Oliver Nanzig/Koller/AFP

Lisboa

Anunciado com grande aparato midiático, o primeiro leilão de um Tyrannosaurus rex na Europa, marcado para acontecer na Suíça em 18 de abril, motivou críticas de paleontólogos de várias partes do mundo e reacendeu o debate sobre questões éticas e científicas do comércio de fósseis.

Vestígios de animais pré-históricos, sobretudo de exemplares raros como os T. rex, têm sido arrematados por quantias cada vez mais altas, o que acaba excluindo do páreo grande parte dos museus e das universidades do planeta.

Vendidos muitas vezes a colecionadores privados endinheirados, exemplares de elevada importância científica e cultural —e todo o conhecimento que eles poderiam gerar— correm o risco de se tornarem inacessíveis aos pesquisadores.

O valor recorde em negociações do tipo pertence justamente a um Tyrannosaurus rex, batizado como Stan, que foi vendido em um leilão conduzido pela Christie’s por US$ 31,8 milhões (cerca de R$ 178,9 milhões) em 2020.

Trinity tem quase 3,9 metros de altura e 11,6 metros de comprimento e valor estimado entre US$ 6,5 milhões e US$ 8,65 milhões - Oliver Nanzig/Koller/AFP

Segundo os cientistas, as cifras milionárias acabam incentivando uma corrida pela exploração baseada apenas na questão financeira. Enquanto no Brasil a exploração comercial e a venda de fósseis é proibida por lei, há países, como os Estados Unidos e várias nações europeias, em que essas atividades são liberadas.

Nos EUA, existem equipes de "caçadores de fósseis" profissionais, interessados em descobrir os exemplares mais valiosos.

"Há uma série de problemas no comércio de fósseis", diz Aline Ghilardi, professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) com vasta pesquisa e atuação sobre o tema.

Além das restrições de acesso às espécies que vão parar em coleções particulares, a cientista destaca que há problemas graves mesmo com os exemplares que ficam com as instituições de pesquisa, como informações erradas ou incompletas sobre os locais de procedência.

"Nos últimos anos, até paleontólogos do Canadá e dos Estados Unidos, locais onde normalmente não se via nenhum problema em vender ou fazer qualquer tipo de escambo com os fósseis, começam a se preocupar mais com a questão, porque eles sabem que isso pode começar a atrapalhar as pesquisas deles", afirma.

Ghilardi destaca ainda que há muitos incentivos para que vendedores falsifiquem ou adulterem os fósseis para inflar os preços das transações. "São as regras do capitalismo. As pessoas querem aumentar o valor agregado de seus espécimes e, para isso, podem jogar sujo. Por exemplo, podem pegar partes de fósseis diferentes e juntar tudo. São mais bonitos, mas aos olhos da ciência são uma aberração. Só servem para isso, como enfeite."

Foi justamente uma suspeita de adulteração no crânio que suspendeu, no ano passado, o leilão de um T. rex batizado de Shen na Christie’s em Hong Kong. Ainda que essa situação tenha sido descoberta antes da negociação, há vários exemplos em que as modificações passam despercebidas na hora da compra.

Em 2013, foi revelado que o museu CosmoCaixa, de Barcelona, exibia um pterossauro brasileiro completamente adulterado. Uma pesquisa indicou que, embora tenha sido adquirido pelo museu como um exemplar de um Anhanguera piscator, não havia qualquer osso dessa espécie no material em exibição.

Tratava-se, na verdade, de uma colagem de fósseis de animais distintos, montados para parecerem ser um só. Um exame de imagem mostrou ainda que alguns segmentos não eram sequer material fóssil, mas sim pequenos pedaços de plástico pintados.

Apesar do choque da revelação, parte da comunidade científica nacional viu um lado positivo no vexame. Além de expor os problemas da adulteração, mostrou os riscos do tráfico internacional desses materiais, uma vez que a comercialização de fósseis brasileiros é proibida, ainda que aconteça com relativa frequência na Europa e nos EUA.

Para alguns cientistas, o Tyrannosaurus rex a ser leiloado em abril na Suíça também é considerado uma adulteração. O esqueleto é formado pela junção dos ossos de três exemplares distintos de T. rex. A situação, no entanto, foi destacada no material de venda do bicho, que até recebeu o nome de Trinity (trindade) para destacar esse ponto.

A maior parte do esqueleto axial e da região pélvica é composto de um exemplar escavado em 2013. Um outro animal, descoberto em 2012, completa os detalhes do esqueleto. Já o crânio é de um terceiro dinossauro, que também forneceu algumas outras pequenas partes. Ao todo, o T. rex montado tem 11,6 metros de comprimento e 3,9 metros de altura.

Por essa razão, o professor da Universidade de Edimburgo Steve Brusatte chamou o esqueleto de "um Frankenstein rex", mas considera que o material tem sua relevância.

"Mesmo assim, esses fósseis são raros e cientificamente importantes. E sinto que eles pertencem adequadamente a um museu, onde podem ser mantidos em segurança, estudados por cientistas e inspirar crianças e o público de todas as idades", disse Brusatte em entrevista ao The Independent.

Um dos maiores predadores que já passaram pela Terra, podendo chegar às 8 toneladas, o T. rex viveu entre 65 e 67 milhões de anos atrás na região que hoje é a América do Norte. Apesar de seu tamanho, seus fósseis são raros. Segundo um levantamento de 2021, apenas 32 exemplares adultos já foram descobertos até agora.

Além da raridade do material, a casa de leilões Koller enumera também a beleza e a qualidade da restauração do esqueleto. "Primeiro você tem de estabilizar todos os ossos, que depois de 65 milhões de anos precisam de algum tratamento. Isso envolve muita cola, pois os ossos são extraídos de uma grande rocha, que chamamos de matriz", diz Yolanda Schicker-Siber do Museu de Dinossauros de Aathal, na Suíça, uma das responsáveis pela preparação do dinossauro, no material promocional do leilão.

"Imagine tirar algo quebrado de um pacote: assim que a rocha ao redor [do osso] é removida, ele se desfaz, então você deve estabilizá-lo imediatamente após remover um pouco da matriz. Esse processo começa no local da escavação e termina no laboratório, onde você finalmente mergulha cada osso em um banho de acrílico, que cuida das rachaduras invisíveis", completa ela.

Responsável pela venda, a casa de leilão Koller não revela o atual proprietário, limitando-se a informar que o material faz parte de uma coleção particular nos Estados Unidos.

Em 1997, o museu Field de História Natural, de Chicago, teve o apoio de diversas instituições, como a Universidade Estadual da Califórnia e a Disney, para reunir os US$ 8,3 milhões usados para arrematar o exemplar. Já o valioso Stan, vendido em 2020, será destinado ao Museu de História Natural de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, que tem inauguração prevista para 2025.

Gigantes arrematados

Stan
Origem: EUA, formação Hell Creek
Descoberto em 1992
Leiloado em 2020 por US$ 31,8 milhões
Comprador: Museu de História Natural de Abu Dhabi, ainda não inaugurado

Sue
Origem: EUA, Dakota do Sul
Descoberto em 1990
Leiloado em 1997 por US$ 8,3 milhões
Comprador: Museu Field de História Natural, em Chicago, com financiamento de várias entidades, como California State University, Walt Disney e MacDonald’s

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