Descrição de chapéu The New York Times

O próximo medicamento de sucesso poderá ser feito sem cobaias?

Ferramentas de alta tecnologia, como órgãos em chips e até mesmo modelos de computador, prometem substituir animais vivos

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Emily Anthes
The New York Times

Em 1937, uma empresa farmacêutica dos Estados Unidos lançou um novo remédio para garganta inflamada e involuntariamente provocou um desastre de saúde pública. O produto, que não havia sido testado em humanos ou animais, continha um solvente que se revelou tóxico. Mais de cem pessoas morreram.

No ano seguinte, o Congresso aprovou a Lei Federal de Segurança de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos, exigindo que as empresas farmacêuticas apresentassem dados de segurança à Administração de Alimentos e Drogas (FDA) antes de vender novos medicamentos. Isso ajudou a inaugurar uma era de testes de toxicidade em animais.

Agora, um novo capítulo no desenvolvimento de drogas medicinais pode estar começando. A Lei de Modernização 2.0 da FDA, sancionada no final do ano passado, permite que os fabricantes de medicamentos reúnam dados iniciais de segurança e eficácia usando novas ferramentas de alta tecnologia, como órgãos feitos por bioengenharia, órgãos em chips e até mesmo modelos de computador, em vez de animais vivos. O Congresso também destinou US$ 5 milhões à FDA para acelerar o desenvolvimento de alternativas aos testes em animais.

Cientistas tailandeses durante teste de vacina contra Covid-19 em filhote de macaco - Mladen Antonov - 24.mai.20/AFP

Outras agências e países estão fazendo mudanças semelhantes. Em 2019, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA anunciou que reduziria e, com o tempo, eliminaria os testes em mamíferos. Em 2021, o Parlamento Europeu pediu um plano para eliminar gradualmente os testes em animais.

Esses movimentos foram impulsionados por uma confluência de fatores, incluindo a evolução das opiniões sobre animais e o desejo de tornar o desenvolvimento de medicamentos mais barato e rápido, disseram especialistas. Mas o que finalmente os torna viáveis é o surgimento de alternativas sofisticadas aos testes em animais.

Ainda é cedo para usar essas tecnologias, muitas das quais precisam ser refinadas, padronizadas e validadas antes que possam ser usadas habitualmente no desenvolvimento de remédios. E mesmo os defensores dessas alternativas reconhecem que os testes em animais provavelmente não terminarão tão cedo.

Mas está aumentando o movimento contra testes em animais, o que poderá ajudar a acelerar o desenvolvimento de medicamentos, melhorar os resultados para os pacientes e reduzir o sofrimento dos animais de laboratório, disseram especialistas.

"Os animais são simplesmente um substituto para se prever o que vai acontecer num ser humano", disse Nicole Kleinstreuer, diretora do Centro Interinstitucional do Programa Nacional de Toxicologia para Avaliação de Métodos Toxicológicos Alternativos.

"Se pudermos chegar a um lugar onde realmente tenhamos um modelo totalmente relevante para o ser humano", acrescentou ela, "não precisaremos mais da caixa preta dos animais."

Atitudes sobre animais

Grupos de direitos dos animais há décadas fazem pressão contra os testes em animais e encontram um público cada vez mais receptivo. Em uma pesquisa Gallup de 2022, 43% dos americanos disseram que os testes médicos em animais eram "moralmente errados", contra 26% em 2001.

Reduzir os testes em animais "é importante para muitas pessoas por muitas razões diferentes", disse Elizabeth Baker, diretora de políticas de pesquisa do Comitê de Médicos para Medicina Responsável, grupo sem fins lucrativos que defende alternativas aos testes em animais. "A ética com os animais é na verdade um grande estímulo."

Mas não é o único. Os testes em animais também são demorados, caros e sujeitos a escassez. O desenvolvimento de medicamentos, em particular, está cheio de falhas, e muitas drogas que parecem promissoras em animais não funcionam em humanos. "Não somos ratos de 70 quilos", disse Thomas Hartung, diretor do Centro Johns Hopkins para Alternativas a Testes em Animais.

Além disso, alguns novos tratamentos de ponta se baseiam em produtos biológicos, como anticorpos ou fragmentos de DNA, que podem ter alvos específicos em humanos.

"Há muita pressão, não apenas por razões éticas mas também por razões econômicas e para realmente diminuir as brechas de segurança, para nos adaptarmos a coisas que são mais modernas e relevantes para o ser humano", disse Hartung.

( Hartung é o inventor citado em uma patente da Universidade Johns Hopkins sobre produção de organoides cerebrais. Ele recebe royalties e presta consultoria para a empresa que licenciou a tecnologia.)

Admirável nova biologia

Nos últimos anos, cientistas desenvolveram maneiras mais sofisticadas de replicar a fisiologia humana em laboratório.

Eles aprenderam a persuadir as células-tronco humanas a se agruparem em um pequeno aglomerado tridimensional, conhecido como organoide, que exibe algumas das mesmas características básicas de um órgão humano específico, como um cérebro, um pulmão ou um rim.

Os cientistas podem usar esses miniórgãos para estudar as bases de doenças ou para testar tratamentos, mesmo em pacientes individuais. Em um estudo de 2016, os pesquisadores fizeram mini-intestinos a partir de amostras de células de pacientes com fibrose cística e, em seguida, usaram os organoides para prever quais pacientes responderiam a novas drogas.

Culturas de organoides cerebrais em um laboratório no Hospital Johns Hopkins, em Baltimore
Culturas de organoides cerebrais em um laboratório no Hospital Johns Hopkins, em Baltimore - Gabriella Demczuk - 7.abr.2016/The New York Times

Os cientistas também estão usando impressoras 3D para produzir organoides em escala e imprimir tiras de outros tipos de tecido humano, como a pele.

Outra abordagem se baseia em "órgãos em um chip". Esses dispositivos, que têm aproximadamente o tamanho de pilhas elétricas AA, contêm pequenos canais que podem ser revestidos com diferentes tipos de células humanas. Os pesquisadores podem bombear medicamentos pelos canais para simular como eles percorreriam uma determinada parte do corpo.

Modelos computacionais

Nem todas as novas ferramentas exigem células reais. Existem também modelos computacionais que podem prever se um composto com determinadas características químicas pode ser tóxico, que quantidade dele atingirá diferentes órgãos e com que rapidez será metabolizado.

Os modelos podem ser ajustados para representar diferentes tipos de pacientes. Por exemplo, um desenvolvedor de medicamentos poderia testar se um medicamento que funciona em adultos jovens seria seguro e eficaz em adultos mais velhos, que geralmente têm função renal reduzida.

"Se você puder identificar os problemas o mais cedo possível usando um modelo computacional, evita que siga o caminho errado com esses produtos químicos", disse Judith Madden, especialista em testes químicos "in silico" (baseados em computador) na Universidade John Moores em Liverpool, na Inglaterra. (Madden também é a editora-chefe da revista Alternatives to Laboratory Animals.)

Algumas abordagens existem há anos, mas os avanços na tecnologia de computação e inteligência artificial as estão tornando cada vez mais poderosas e sofisticadas, disse Madden.

As células virtuais também se mostraram promissoras. Por exemplo, os pesquisadores podem modelar células cardíacas humanas individuais usando "um conjunto de equações que descrevem tudo o que está acontecendo na célula", disse Elisa Passini, gerente do programa de desenvolvimento de medicamentos no Centro Nacional de Substituição, Refinamento e Redução de Animais em Pesquisa, ou NC3Rs, na Grã-Bretanha.

Reduzir ou substituir

Muitas potenciais alternativas a animais exigirão mais investimento e desenvolvimento antes que possam ser usadas amplamente, disseram especialistas. Elas também têm suas próprias limitações. Os modelos de computador, por exemplo, são tão bons quanto os dados sobre os quais são construídos, e há mais dados disponíveis sobre certos tipos de compostos, células e resultados do que outros.

Por enquanto, esses métodos alternativos são melhores para prever resultados relativamente simples e de curto prazo, como toxicidade aguda, do que complexos e de longo prazo –por exemplo, se um produto químico pode aumentar o risco de câncer quando usado durante meses ou anos–, disseram os cientistas.

E especialistas discordam sobre até que ponto essas abordagens alternativas podem substituir os modelos animais. "Estamos absolutamente trabalhando para um futuro em que queremos substituí-los totalmente", disse Kleinstreuer, embora reconheça que isso pode levar décadas, "ou mesmo séculos".

Mas outros disseram que essas tecnologias devem ser vistas como um complemento, e não um substituto, para os testes em animais. Drogas que se mostram promissoras em organoides ou modelos de computador ainda devem ser testadas em animais, disse Matthew Bailey, presidente da Associação Nacional de Pesquisa Biomédica, grupo sem fins lucrativos que defende o uso responsável de animais em pesquisas.

"Os pesquisadores ainda precisam ser capazes de ver tudo o que acontece num organismo mamífero complexo antes de serem autorizados a passar para os ensaios clínicos em humanos", disse ele.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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