Descrição de chapéu The New York Times

Pássaros sonham? Aparentemente sim, e até que estão voando

O que revelam novas pesquisas sobre o cérebro das aves e o sono REM delas

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Maria Popova
The New York Times

Uma vez sonhei com um beijo que ainda não havia acontecido. Sonhei com o ângulo em que nossas cabeças se inclinavam, o encaixe dos meus dedos atrás da orelha dela, a pressão exercida nos lábios por essa transferência de confiança e ternura.

Sigmund Freud teria desconsiderado isso como mera quimera do inconsciente desejoso. Mas o que descobrimos desde então sobre a mente sugere outra possibilidade para a função adaptativa dessas vidas paralelas na noite.

Em uma manhã fria, logo após o sonho do beijo, observei uma jovem garça noturna dormindo em um galho sobre o lago no Brooklyn Bridge Park, em Nova York, com a cabeça dobrada no peito, e me peguei pensando se os pássaros sonham.

pássaro ilustrado
Adara Sanchez/The New York Times

A percepção de que animais não humanos sonham remonta, pelo menos, aos dias de Aristóteles, que observou um cachorro dormindo latir e considerou isso evidência inequívoca de vida mental. Mas René Descartes reduziu outros animais a meros autômatos, manchando séculos de ciência com a suposição de que qualquer coisa diferente de nós é inerentemente inferior.

No século 19, quando o naturalista alemão Ludwig Edinger realizou os primeiros estudos anatômicos do cérebro das aves e descobriu a ausência de um neocórtex —a camada externa do cérebro responsável por cognição complexa e resolução criativa de problemas—, ele considerou as aves como pouco mais do que marionetes cartesianas de reflexo.

Essa visão foi reforçada no século 20 pela abordagem, liderada por B.F. Skinner, do behaviorismo, uma escola de pensamento que considerava o comportamento uma máquina de Rube Goldberg de estímulo e resposta governada por reflexo, ignorando estados mentais internos e resposta emocional.

Em 1861, apenas dois anos após a publicação de "A Origem das Espécies", de Charles Darwin, um fóssil foi descoberto na Alemanha com a cauda e as mandíbulas de um réptil e as asas e a fúrcula de um pássaro, levando à revelação de que os pássaros haviam evoluído dos dinossauros.

Desde então, aprendemos que, embora pássaros e humanos não tenham compartilhado um ancestral comum há mais de 300 milhões de anos, o cérebro de um pássaro é muito mais semelhante ao nosso do que ao de um réptil.

A densidade de neurônios de seu prosencéfalo —a região envolvida no planejamento, processamento sensorial e respostas emocionais, e da qual o sono REM é amplamente dependente— é comparável à dos primatas. No nível celular, o cérebro de um pássaro canoro tem uma estrutura —a crista ventricular dorsal (DVR)— semelhante ao neocórtex dos mamíferos em função, se não em forma.

Ainda assim, os cérebros das aves são capazes de proezas inimagináveis para nós, especialmente durante o sono: muitos pássaros dormem com um olho aberto, mesmo durante o voo.

Mas, enquanto o sono é um comportamento físico externamente observável, sonhar é uma experiência interior tão misteriosa quanto o amor —um mistério para o qual a ciência trouxe tecnologia de imagem cerebral para iluminar a paisagem interna da mente do pássaro adormecido.

O primeiro eletroencefalograma (EEG) de atividade elétrica no cérebro humano foi registrado em 1924, mas o EEG não foi aplicado ao estudo do sono das aves até o século 21. Ainda mais incipiente é a ressonância magnética funcional (fMRI), desenvolvida na década de 1990.

As duas tecnologias se complementam. Ao registrar a atividade elétrica de grandes populações de neurônios próximos à superfície cortical, o EEG rastreia o que os neurônios fazem de forma mais direta. O fMRI pode localizar com mais precisão a atividade cerebral por meio dos níveis de oxigênio no sangue.

Os cientistas têm usado essas tecnologias juntas para estudar os padrões de disparo de células durante o sono REM na tentativa de deduzir o conteúdo dos sonhos.

Um estudo de tentilhões-zebra mapeou notas específicas de melodias cantadas durante o dia para neurônios disparando no prosencéfalo. Então, durante o REM, os neurônios dispararam em uma ordem semelhante: os pássaros pareciam ensaiar as músicas em seus sonhos.

Um estudo de fMRI com pombos descobriu que regiões cerebrais responsáveis pelo processamento visual e navegação espacial estavam ativas durante o REM, assim como regiões responsáveis pela ação das asas, mesmo que as aves estivessem imóveis com o sono: elas pareciam estar sonhando em voar.

A amígdala —um conjunto de núcleos responsáveis pela regulação emocional— também estava ativa durante o REM, sugerindo sonhos permeados por sentimentos. A garça noturna que vi provavelmente estava sonhando também —o pescoço dobrado é um marcador clássico de atonia, a perda de tônus muscular característica do estado REM.

Mas o ponto mais assombroso da pesquisa sobre o sono das aves é que, sem os sonhos dos pássaros, nós também poderíamos ser desprovidos de sonhos.

Existem dois grupos principais de aves vivas: as Paleógnatas, incapazes de voar, a exemplo do avestruz; e as Neognatas, compreendendo todas as outras aves. Estudos de EEG em avestruzes dormindo encontraram atividade semelhante ao REM no tronco cerebral —uma parte mais antiga do cérebro—, enquanto em aves modernas, assim como em mamíferos, essa atividade semelhante ao REM ocorre principalmente no cérebro anterior, mais recentemente desenvolvido.

Vários estudos de monotremados dormindo —mamíferos que botam ovos, como o ornitorrinco e a equidna— também revelam atividade semelhante ao REM no tronco cerebral, sugerindo que este foi o berço ancestral do REM antes de migrar lentamente para o cérebro anterior.

Se for assim, o cérebro das aves pode ser onde a evolução projetou os sonhos —aquela câmara secreta adjacente à nossa consciência desperta onde continuamos a trabalhar nos problemas que ocupam nossos dias.

Dmitri Mendeleev, depois de ponderar longa e intensamente sobre a disposição dos pesos atômicos em seu estado desperto, chegou à sua tabela periódica em um sonho. "Todos os elementos se encaixaram conforme necessário", ele relatou em seu diário. "Ao acordar, imediatamente anotei em um pedaço de papel."

Stephon Alexander, cosmólogo agora na Universidade Brown, chegou a uma descoberta inovadora sobre o papel da simetria na inflação cósmica em um sonho, o que lhe rendeu um prêmio nacional da Sociedade Americana de Física.

Para Albert Einstein, a revelação central da relatividade tomou forma em um sonho de vacas pulando simultaneamente e se movendo em um movimento ondulatório.

Assim como com a mente, também com o corpo. Estudos mostraram que pessoas aprendendo novas tarefas motoras as "praticam" durante o sono e, depois, saem-se melhor quando acordadas. Essa linha de pesquisa também mostrou como a visualização mental ajuda os atletas a melhorar o desempenho.

Pode ser que no REM nós pratiquemos o possível até torná-lo real. Pode ser que o beijo em meu sonho não tenha sido fantasia noturna, mas, assim como os sonhos da garça noturna de voar, a prática da possibilidade. Pode ser que tenhamos evoluído para sonhar a nós mesmos na realidade —um laboratório de consciência que começou no cérebro das aves.

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