Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Computadores quânticos prometem revolucionar nossa relação com o mundo

Capacidade de quebrar criptografia torna inovação estratégica na esfera militar, o que deve acirrar assimetrias globais de poder

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O grande mito tecnológico da atualidade é que a inteligência artificial irá se tornar infinitamente mais hábil que a gente. É uma promessa com aspectos distópicos, mas que também mira a cura do câncer, produtividade alimentar ilimitada e muito mais.

Seus maiores percalços não são os debates éticos que ganham destaque na mídia, mas a capacidade computacional monumental que essa possibilidade exige mesmo em suas versões mais sóbrias. A mesma coisa se aplica às simulações dinâmicas dos ambientes físicos, conhecidas como gêmeos digitais, centrais para que o metaverso torne-se parte relevante do real.

Biblioteca em Dubai incorpora tecnologia e inteligência artificial para tornar a biblioteca acessível - Giuseppe Cacace - 16.jun.22/AFP

Enquanto debatemos os prós e os contras dessas promessas, quem toca o dia a dia angustia-se porque falta um tanto para chegarmos lá, ao mesmo tempo que a invenção de processadores mais poderosos vem se tornando cada vez mais difícil.

O salto tecnológico das últimas décadas tem muito a ver com a multiplicação da capacidade dos dispositivos digitais, a qual é em grande medida determinada pela densidade de transistores em suas placas lógicas. Dobrando a quantidade de transistores, basicamente dobramos o processamento, o que vem acontecendo desde 1975.

As versões atuais desse componente possuem menos de 10 nanômetros de largura. Um átomo de silício tem 0,2. A partir de 0,5 nanômetro, flutuações quânticas tendem a tornar impossível saber se um elétron está dentro ou fora do transistor, o que impossibilita a computação digital. A visão dominante é que esse limite seja atingido em até cinco anos.

Estamos na fase de esgotamento de uma tendência de quase meio século, que subsidia boa parte das promessas tecnológicas das próximas décadas.

Essa não é a única questão. Muitos dos nossos sonhos tecnológicos mostram-se pouco adequados ao tratamento digital, de maneira geral. Por exemplo, precisaríamos de milhares de anos de processamento para rodar simulações realistas dos riscos e benefícios cruzados de uma cartela de projetos de infraestrutura de abrangência nacional e projetá-las em um metaverso.

A promessa da computação quântica é superar essa barreira. Isso deve começar a acontecer em quatro a cinco anos, mas só deve ganhar momento em torno da virada da década, o que pode vir a marcar o início de uma nova era tecnológica.

Em termos mais imediatos, o destaque vai para a perspectiva de que um novo imaginário futurista, de inspiração quântica, encontra-se em fase de consolidação. Eu o chamei "o quantum de tudo" em um artigo anterior, que descreve os principais conceitos em jogo. Caso você não tenha tido oportunidade de lê-lo, recomendo que o faça quando der.

O gato morto e vivo ao mesmo tempo tem bem mais informação para oferecer

Nos computadores digitais, a eletricidade que chega aos transistores permite identificar estados com/sem corrente, dando origem à unidade informacional básica, o bit, que pode ser 0 ou 1.

O computador quântico funciona de um jeito inteiramente diferente. Em vez dessa organização, são usadas amplitudes das partículas atômicas ou subatômicas, que, além de interferirem umas com as outras como ondas no mar, abrem-se a uma ampla gama de propriedades quânticas, desde que isoladas do resto do mundo.

Uma dessas propriedades é a superposição, que permite à partícula assumir simultaneamente o pico e o vale da onda cuja amplitude ainda não foi medida, além de qualquer posição intermediária entre ambos. Isso faz com que carregue muito mais informação que sua contrapartida binária, na qual a partícula estaria em apenas um lugar de cada vez.

No interior dessas novas máquinas, elétrons ou fótons são mantidas em superposição pelo tempo necessário ao processamento das amplitudes nos bits quânticos ou qubits, os quais são também sustentados em estado de emaranhamento, que é uma espécie de correlação hiperforte que faz com que o registro do estado de um qubit gere imediatamente informação sobre todos os outros com o qual esteja emaranhado. Isso torna o processamento quase instantâneo, já que dispensa a decodificação individual de cada bit.

Boa parte do esforço da computação quântica consiste no isolamento das partículas das interferências do mundo exterior para que elas sigam exibindo suas características especiais. Em termos mais específicos, essas propriedades nunca são de fato perdidas; o que acontece é que a exposição faz com que as partículas sejam emaranhadas à realidade exterior, passando a se comportar como todo o resto. A magia se esvai.

Atributos quânticos mudam radicalmente a abordagem de problemas difíceis. Enquanto o processamento digital busca soluções como quem busca a saída de um labirinto, testando-as uma a uma, a computação quântica funciona como se as testasse simultaneamente.

O resultado é estarrecedor: um dispositivo com meros 300 qubits pode processar mais soluções para um problema que o número de átomos no universo, ao passo que operações de rotina em mil qubits, o que a IBM promete para o ano que vem, tomariam mais de vinte vezes o tempo transcorrido desde o Big Bang para serem simuladas em computadores tradicionais.

No momento, computadores quânticos de diferentes fabricantes, todos eles com menos de 260 qubits, disputam o título de mais poderoso, enquanto as operações até então impossíveis vêm surgindo de maneira tímida.

Todavia, há limitações, começando pela impossibilidade de isolar completamente os qubits do mundo exterior, até porque é preciso conhecer o resultado computado. O vazamento não intencional das informações quânticas para fora da máquina, seja na forma de radiação, observação ou calor é o principal desafio a ser vencido para que a tecnologia deslanche.

A estratégia usada hoje em dia envolve um tipo de compensação da informação que vaza, que demanda a adição de vários qubits emaranhados para que funcione —algo na linha de 1 milhão de qubits para que mil cumpram o seu papel.

Ao menos que a física avance substancialmente, o que os especialistas no assunto com os quais venho conversando não acreditam que aconteça, será preciso dar um jeito de colocar milhões de qubits em ação e melhorar os softwares para que as aplicações transformadoras apareçam.

Aplicações

A ideia de que a computação quântica irá substituir a digital é equivocada. Seu papel mais provável é na solução de problemas com muitas dimensões e poucas soluções. Por exemplo, durante a Operação Satiagraha, o FBI tentou quebrar a criptografia dos discos rígidos de Daniel Dantas sem sucesso. Isso foi há uma década e até hoje não foi possível acessar as supostas evidências contra o banqueiro do Opportunity, cuja condenação foi revertida algum tempo depois. A ideia é que o computador quântico consiga colocar esse tipo de coisa em pratos limpos.

A capacidade de quebrar até os mais complexos códigos torna essa inovação particularmente estratégica na esfera militar. É esperado que ciberataques quânticos atinjam em cheio a infraestrutura de outros países, levem à escuta de conversas encriptadas e, eventualmente, ao roubo de segredos militares.

Esse fator está presente na corrida acirrada pela hegemonia quântica que Ocidente e China vêm travando, na qual esta vem levando a melhor. É esperado que o progresso quântico acirre ainda mais as assimetrias globais de poder a partir de 2025. Segundo me disse Peter Shor, um dos pais da computação quântica, isso deve estimular o desenvolvimento da criptografia pós-quântica, que irá servir de antídoto a esses ataques, nos países em que estiver disponível.

A computação quântica também deve impactar a maneira como lidamos com o aquecimento global. O caso dos fertilizantes é ilustrativo. Hoje consumimos 170 milhões de toneladas deles por ano, o que leva à emissão de cerca de 1,4% de todo o gás carbono que chega à atmosfera do planeta. Metade da comida do mundo utiliza fertilizantes, que podem ter origem natural ou sintética. A produção desse segundo tipo é muito custosa em termos ambientais. Se pudéssemos emular o que a natureza faz, seríamos capazes de produzir comida mais barata e sustentável.

No centro do problema estão os catalisadores do processo de fixação do nitrogênio, peça-chave dos fertilizantes. Pesquisadores estimam que, usando as técnicas atuais, seriam necessários 800 mil anos para criar moléculas capazes de substituir eficientemente as que conhecemos e um dia usando computação quântica.

A mesma coisa se aplica à geração de baterias, painéis solares, polímeros, eletrônicos, rotas para a aviação e diversos outros processos ambientalmente custosos, incluindo a própria computação. O computador quântico não é apenas exponencialmente mais poderoso, como é menor e mais econômico do que os atuais supercomputadores, presentes em diversas empresas, centros de pesquisa e afins.

A nova tecnologia também deve turbinar nossos modelos climáticos, tanto em termos imediatos, quanto mediatos, desqualificando de vez o negacionismo ambiental. Essa tarefa depende de simulações complexas do comportamento humano, que é onde antevejo suas maiores contribuições sociais e também suas maiores controvérsias.

Consideremos por exemplo o debate econômico, domínio em que entendimentos técnicos e ideológicos se fundem. Este envolve valores como intolerância à desigualdade e intolerância à mudança, além de interesses escusos de grupo, os quais são responsáveis pelas maiores cisões.

Porém, não deixa de ser verdade que a impossibilidade de mapear os impactos imediatos das decisões econômicas em todas as suas esferas e de lançar luz sobre seus efeitos de longo prazo, dado que as interações crescem de maneira exponencial, contribuem para essa situação.

Algoritmos quânticos prometem trazer precisão sem precedentes para as simulações econômicas. Suas conclusões serão baseadas em bilhões de vezes mais dimensões e interações do que nós somos capazes de pensar ou calcular usando o atual estado da arte em IA, o que deve aumentar a clareza do que está em jogo em cada proposta, tornando o debate mais esclarecido. Políticas públicas, relações internacionais e desenhos de leis dificilmente passarão incólumes.

Por um lado, será ótimo. Por outro, é provável que isso crie uma nova hegemonia computacional na maioria das áreas do conhecimento, mais ou menos como vem acontecendo na radiologia e ciências atuariais, nas quais os algoritmos desempenham as tarefas centrais melhor do que os humanos, que acabam assumindo o papel de gestores da produção sintética de resultados.

Será que perderemos alguma coisa importante com isso? Neste caso, será que essa perda irá nos direcionar para caminhos piores que os atuais? Por exemplo, um entendimento sobre a crise de 2008 é que esta foi alimentada pela matematização excessiva do pensamento econômico, que estimulou a proliferação de produtos financeiros obscuros. Essa crítica recai, especificamente, sobre os usos do modelo de precificação Black-Scholes e de seus diversos desdobramentos formais nos mercados.

Ainda é cedo para saber. Em geral, novas tecnologias introduzem distorções diversas, que tendem a ser corrigidas com o tempo, gerando um balanço mais positivo que negativo. Exemplos disso incluem os smartphones e a web, além da história da civilização.

O que parece factível é considerar que, muito antes da tão temida quanto aguardada IA consciente, teremos acesso remoto —e, muitas vezes, indireto— a máquinas bem menos interessantes, com um potencial ainda maior de mudar a realidade.

Agradeço ao prof. Peter Shor (MIT) pelas contribuições valiosas.

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