Descrição de chapéu Livros Mente

Natureza não aponta quais animais devem ter direitos, afirma filósofo

Peter Godfrey-Smith defende que há espécies mais e menos conscientes e que IA senciente teria que se parecer com cérebro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Colagem de raios-x coloridos de conchas de náutilo Image Source

Eduardo Sombini
Eduardo Sombini

Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

[RESUMO] Em entrevista à Folha, filósofo da ciência discute os mecanismos de formação da mente ao longo da evolução dos animais e advoga uma abordagem gradualista da consciência, que considera que há diferentes níveis de experiência subjetiva entre as espécies. ​

O filósofo australiano Peter Godfrey-Smith não minimiza as barreiras que cercam a reflexão sobre o desenvolvimento da consciência, tema do seu novo livro, "Metazoa" (Todavia): estamos embrenhados em um matagal, tentando abrir caminhos com ferramentas provavelmente inadequadas.

Com um pouco de abstração, é possível imaginar que polvos, camarões, abelhas e os mamíferos interagem com o mundo exterior como sujeitos, isto é, com um ponto de vista próprio. Muito mais difícil é conceber por quais meios, ao longo da história evolutiva, ingredientes e processos biológicos puderam levar ao surgimento da mente.

Homem com terno
Peter Godfrey-Smith, professor de filosofia da ciência da Universidade de Sydney e autor de 'Metazoa' - Paul Morejón/Divulgação

Godfrey-Smith, professor de filosofia da ciência na Universidade de Sydney, vem enfrentando essa questão há anos. Em "Outras Mentes", de 2019, os protagonistas são os polvos da costa australiana, com quem conviveu por um longo tempo em seus mergulhos.

O autor seguiu uma trilha biológica, que combina a análise da evolução desses cefalópodes e das características do seu complexo e estranhamente descentralizado sistema nervoso. "Metazoa" dá continuidade a esse projeto, com a ambição de abarcar todo o reino animal.

O cerne do argumento da obra está na ideia de que, apesar de a percepção sensorial e a capacidade de ação serem generalizados entre os seres vivos, esses mecanismos adquirem feições específicas entre os animais, inaugurando um novo modo de ser no mundo.

A sofisticação dos sentidos e a possibilidade de agir com mais desenvoltura permitiu que os peixes, por exemplo, se tornassem capazes de perceber o ambiente distinguindo os resultados das suas ações das ações de outros. Essa é a raiz de um senso de si, propõe Godfrey-Smith, condição fundamental para experiências subjetivas mais profundas.

O livro enfrenta outro debate espinhoso: quando a consciência surgiu ou, entre os seres vivos que conhecemos, quais são e quais não são conscientes? Procurar o momento em que as luzes da mente teriam se acendido ajuda pouco, ele diz, já que a consciência deve ser gradual entre os animais, à semelhança de outros atributos evolutivos. Devemos, portanto, nos concentrar mais nas zonas cinzentas que nos pontos brancos ou pretos.

"Se olharmos para animais como minhocas e anêmonas e nos perguntarmos se eles têm experiência subjetiva, a resposta será: eles têm algo parecido com isso. Seu gato é um animal consciente. Uma minhoca pode ser um caso intermediário e, provavelmente, há muitos animais desse tipo", afirma em entrevista à Folha por videochamada de Paris, onde estava ministrando uma série de conferências.

O sr. afirma que a sua perspectiva de análise das relações entre corpo e mente é biológica e se encaixa em um ponto de vista materialista. Pode explicar essa abordagem? Considero que um retrato do mundo físico e um retrato dos sistemas biológicos se encaixam em um quadro científico bastante convencional. O problema é compreender o papel da mente no interior do que parece não ser um cenário amigável para esse projeto —encontrar o lugar da experiência subjetiva, em particular, nesse cenário. Esse aspecto é bem familiar da filosofia naturalista.

O que eu faço de diferente, em comparação com outros filósofos, é passar muito tempo com determinados animais, particularmente animais marinhos e invertebrados muito distantes de nós na árvore da vida —cefalópodes, como o polvo, mas também artrópodes, como o camarão— e tentar entrar na visão de mundo deles.

Depois de tanto tempo mergulhando, consegui ter uma noção da complexidade dos animais que estão longe de nós. Quando você lê uma descrição científica em um artigo, os animais parecem mais previsíveis, porque a sua esquisitice foi eliminada. Na natureza, eles fazem tantas coisas estranhas, às vezes só uma vez, e isso te permite conhecer um comportamento único. Há tanta originalidade e complexidade oculta na vida dos animais.

O que significa compreender a mente como um produto da evolução e de que formas isso difere de outras hipóteses sobre o tema? Há uma longa história de diferentes visões. Duas das principais alternativas são visões dualistas que sustentam que a mente e a matéria são partes básicas distintas da estrutura do mundo e nenhuma delas se explica em termos da outra: não se explica o mental em termos do físico nem o físico em termos do mental, ambos têm sua própria realidade fundamental.

Eu levo a sério as visões dualistas, que se coadunam muito bem com tradições religiosas e aparecem em muitas discussões filosóficas —Descartes certamente deu razões para levá-las a sério. Elas são plausíveis, mas têm muita dificuldade em se encaixar em um mundo em que os humanos são ligados por parentesco a outros animais, em que as habilidades humanas têm algum grau de continuidade com as habilidades de outros animais e em que outros animais provavelmente têm experiências como nós temos. Por isso, o dualismo é estranho nesse contexto.

Mais recentemente, um número considerável de filósofos tem olhado com atenção o pampsiquismo, a ideia de que tudo na natureza, toda realidade física, tem uma espécie de centelha de mentalidade. Isso é diferente do dualismo clássico. Não é a ideia de que existem alguns sistemas nos seres vivos em que o físico e o mental estão unidos. É uma visão na qual toda a natureza tem, simultaneamente, um aspecto físico e um aspecto mental. Uma visão extrema em alguns sentidos, mas novamente popular nos últimos anos.

Vejo essas alternativas. Esses são os pontos de vista que eu quero evitar.

Sua interpretação da mente se pauta no gradualismo. Como ele se aplica ao problema da consciência e da experiência subjetiva de animais? A razão pela qual eu adoto uma visão gradualista vem da biologia, do pensamento evolucionário mainstream. Qualquer coisa complicada que surja pela primeira vez em um sistema vivo precisa surgir por etapas graduais, não de uma vez.

Essa não é a ideia de que a evolução vai sempre na mesma velocidade ou algo parecido, é só uma oposição à ideia de que algo realmente importante pode surgir em uma mutação repentina. Isso é muito improvável.

Quando você aplica isso à mente, você se depara com um problema. Há alguns aspectos da mente que se ajustam a essa ideia. O comportamento pode se tornar gradualmente mais complicado, assim como a percepção. Toda vida celular conhecida tem alguma capacidade de percepção e reação ao que está acontecendo, até mesmo as bactérias.

No entanto, quando você tenta explicar a experiência subjetiva ou a consciência dessa maneira, muitas pessoas veem um problema, porque elas acreditam em um surgimento de uma vez da consciência. Não seria possível que algo estivesse no meio do caminho entre ser e não ser um animal consciente. Um animal tem ou não consciência. As pessoas pensam isso como uma questão de sim ou de não.

Precisamos nos acostumar à ideia de que a história evolutiva provavelmente tem casos de zonas cinzentas, em que um aspecto não está nem presente nem ausente com certeza. Essa ideia é controversa e muitos filósofos a negam, mas, uma vez que seja acomodada como um traço do registro histórico, poderemos propor, com cautela, novas interpretações sobre o que está ao nosso redor.

Se olharmos para animais como minhocas, anêmonas, talvez mosquitos e outros, e nos perguntarmos se eles têm experiência subjetiva, a resposta será: eles têm algo parecido com isso. Seu gato é um animal consciente nesse sentido amplo. Uma minhoca pode ser um caso intermediário e, provavelmente, há muitos animais desse tipo. É bastante provável que essas zonas genuinamente cinzentas ao nosso redor sejam um traço muito comum.

No livro, o sr. apresenta o debate sobre cognição mínima e senciência mínima, que questiona se seres como bactérias, fungos e plantas podem desenvolver algum tipo de subjetividade. Como essa discussão se articula ao seu entendimento da consciência? A cognição mínima é a uma espécie de habilidade básica para perceber o que está acontecendo e reagir. Além disso, é muito comum que os seres vivos tenham um pouco de memória e percebam o que está acontecendo agora para fazer uso disso no futuro. Mesmo as bactérias têm, em muitos casos, um elemento disso.

Isso significa que, se você olhar para uma descrição de todos os diferentes tipos de percepção e ação que o mundo contém, há uma variedade enorme, com versões deles presentes mesmo em organismos unicelulares.

Isso significa que os organismos unicelulares têm uma centelha de senciência também? Eles sentem o que eles percebem ou eles sentem um fluxo de experiência enquanto eles agem? Essa é uma questão muito difícil. Existe uma relação estreita entre a cognição mínima e a senciência mínima?

No livro, eu me inclino a dizer que a relação não é tão estreita e que a experiência subjetiva entra em cena um pouco mais tarde, em casos mais complicados que organismos unicelulares. É um erro pensar que esses organismos têm um mínimo de senciência ou que essa gradação de senciência têm alguma importância nesse caso.

O sr. defende que o desenvolvimento de novas formas de percepção sensorial ao longo da história evolutiva deu origem ao modo de ser animal. Como a complexificação dos sentidos permitiu o surgimento de seres vivos conscientes? Existe uma característica da percepção animal, distinta da percepção que pode existir em bactérias e plantas: muitos animais, por estarem agindo, se movendo, fazendo coisas ao mesmo tempo que estão percebendo o ambiente, precisam levar em conta suas próprias ações sobre os seus sentidos.

Eles têm que tentar distinguir, entre o que eles percebem, o que é consequência de eventos externos e o que é consequência do que o próprio animal fez. Se você se move, o movimento que você cria muda a cena ao seu redor, mesmo que nada tenha se alterado no exterior. É só você alterando a relação com o que está ao seu redor, e isso vai afetar como as coisas são percebidas por você.

Quando os animais lidam com isso e registram as prováveis consequências das suas próprias ações, usando isso para ajudar a dar sentido ao que estão vendo, acredito que isso envolva um senso mais ou menos tácito de si. Acho que a capacidade de filtrar as consequências de suas próprias ações das consequências de mudanças externas é o começo do senso de si nos animais.

O sr. escreve que "a extensão da consideração não é a mesma coisa que a extensão de direitos, nem se trata de estabelecer algum tipo de igualdade de condição". Não é contraditório entender que uma ampla gama de animais é consciente em graus variados e, ao mesmo tempo, não propor a extensão de seus direitos? Estender a consideração é um primeiro passo. É possível, em seguida, estender algo como direitos, mas, nessa decisão, nós estaríamos expandindo um círculo em que nosso comportamento teria de ser constrangido.

A natureza não nos diz onde os direitos devem ou não estar. Isso depende de nós. Os direitos são construções políticas muito boas e muito úteis na vida social, mas não acho que eles façam parte da natureza.

Há muitos animais, como insetos, em que é muito difícil imaginar grandes mudanças na nossa relação com eles, no sentido de uma maior consideração. Deveríamos pensar neles de maneira diferente, mas mudar nosso comportamento no caso de animais que têm uma relação bastante antagônica conosco, são muito numerosos e portadores de muitas doenças é um grande problema.

Eu não mudaria muito nosso comportamento no caso de mosquitos. Acho que estamos presos a uma relação de certa forma antagônica com eles. No entanto, se chegarmos a acreditar que os insetos sentem dor e sofrem, posso muito bem imaginar tentar desenvolver pesticidas que não causem sofrimento. No caso de animais como mosquitos, a discussão sobre direitos não diz respeito só a uma extensão deles, mas também a uma ideia muito destrutiva em relação aos humanos.

O sr. aponta que seu livro não existiria sem experimentos científicos realizados em animais, que produzem sofrimento. Qual é sua posição sobre esse assunto? Eu apoio uma reforma. Acho que deveria existir muito menos experimentação em animais, principalmente em casos em que a experimentação é impulsionada pela curiosidade, quando não se trate de um projeto médico imediato, mas de ciência básica, e em que o animal leve uma vida de baixa qualidade, sofrendo fisicamente ou confinado de uma forma que sua vida se torne miserável.

Gostaria de ver muito menos pesquisas desse tipo, muito menos experimentos em primatas. Isso seria um primeiro passo. Você se depara com casos como o de ratos, usados em grande quantidade. Há um bom artigo do filósofo Philip Kitcher sobre isso, em que ele sugere que seria viável dar aos ratos usados em experimentos médicos uma vida melhor que a de um rato comum. Nós apenas compensaríamos, nos certificando que, mesmo sendo usados em experimentos, eles estejam melhor que estariam de outra forma.

Acho que essa é uma boa ideia e apoio uma reforma considerável nessa área. Não gostaria de ver os polvos se tornando organismos-modelo para a neurociência, algo de que as pessoas falam às vezes. Não quero ser um organismo-modelo e não gostaria que isso acontecesse com eles.

O livro também discute se seria possível um computador equipado com inteligência artificial adquirir consciência. Recentemente, um funcionário do Google foi afastado por defender que a inteligência artificial da companhia tinha se tornado senciente. Por que o sr. é cético sobre essa possibilidade? Não acho impossível construir um computador com uma estrutura física muito diferente que possa ser senciente. Acho que, provavelmente, não é possível fazer isso com um computador com o tipo de hardware que estou usando agora, por exemplo.

É um tipo de coisa física simplesmente diferente demais de um cérebro. Se quisermos criar sistemas artificiais sencientes, seria necessário construir uma máquina diferente, algo mais parecido com o cérebro, ainda que não precise estar vivo.

Digo isso com cautela. Acho que ninguém realmente sabe o que é possível aqui, mas, em comparação com outras pessoas, acho muito menos provável que projetos usuais de inteligência artificial deem origem a uma máquina senciente em um futuro próximo. Isso exigiria algo mais revolucionário.

Peter Godfrey-Smith

Professor de história e filosofia da ciência na Universidade de Sydney, Austrália. Doutor em filosofia pela Universidade da Califórnia em San Diego, foi professor das universidades Stanford e Harvard e desenvolve pesquisas em filosofia da biologia e filosofia da mente. Autor, entre outros livros, de "Metazoa: a Vida Animal e o Despertar da Mente" e "Outras Mentes: o Polvo e a Origem da Consciência".

Metazoa: a Vida Animal e o Despertar da Mente

  • Preço R$ 89,90 (376 págs.); R$ 59,90 (ebook)
  • Autoria Peter Godfrey-Smith
  • Editora Todavia
  • Tradutor Daniel Galera
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.