Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Descrição de chapéu Facebook Meta

Será que o capitalismo dará lugar ao tecnofeudalismo?

Desenho socioeconômico emergente não pode ser estampado sobre matriz de séculos atrás

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O declínio do capitalismo já foi previsto diversas vezes, mas agora o tom é diferente.

Ao invés da transição para um modelo mais igualitário, a tese em evidência é a de que o status quo produtivo está sucumbindo sob práticas socioeconômicas cada vez menos atreladas à competição mercadológica e à exploração do trabalho remunerado.

A culpa seria das grandes empresas de tecnologia, como Facebook/Meta, Amazon, Apple, Microsoft e Google (FAAMG), que teriam se tornado imunes às forças de mercado. Suas vantagens competitivas não encontrariam precedentes na modernidade porque o modelo de plataforma em que operam converte seus usuários —a humanidade inteira— em trabalhadores não remunerados, em franco contraste com o que se dá no capitalismo produtivo.

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Montagem com logos de Amazon, Apple, Facebook e Google - REUTERS

A normalização das tarefas sem bonificação, como o refinamento de algoritmos de recomendação por meio de cliques, criaria as bases para o declínio global da capacidade de geração de renda, exaurindo os mercados pelo lado da demanda, enquanto torna parcelas cada vez maiores da humanidade dependentes de alguma solução assistencial para sobreviver.

Monopólios de funções vitais, ausência de retorno para a sociedade e trabalho não remunerado criariam as condições para uma ruptura econômica sem paralelos recentes, a qual daria origem à era do tecnofeudalismo, em face da qual "a história simultaneamente avançaria tecnologicamente e regrediria politicamente".

Feudalismo, capitalismo, tecnofeudalismo

O sistema feudal vigorou na Europa entre os séculos 9 e 14 e, com distinções, em outras partes do mundo. Jacques Le Goff escreveu que a sua característica distintiva era a presença de duas classes: alguns proprietários-guerreiros, que mantinham entre si relações de subordinação e interdependência; e um grande número de camponeses que, pelo uso da terra e proteção, eram obrigados a transferir parte substancial da sua produção e tempo de serviço àqueles.

No feudalismo, os incentivos para o aumento da produtividade eram tímidos, e a subtração de recursos, coercitiva.

Conforme Evgeny Morozov ressalta, do ponto de vista econômico, a transição para o capitalismo aconteceu conforme a transferência forçada da riqueza passou a ser preterida pela deliberada, ao passo que, do ponto de vista sociopolítico, as regras privadas estabelecidas nos feudos foram comutadas pelas leis que caracterizam os estados modernos.

O tecnofeudalismo seria o retorno ao modo pré-capitalista de produção e aos seus fundamentos sociopolíticos: trabalho sem remuneração e apropriação privada das funções do Estado, em espaços de convivência digital, regidos por regras criadas pelos novos senhores feudais.

Na economia de plataformas, o valor gerado se propagaria de modo unidirecional, não havendo evolução material da sociedade, apenas estagnação e acúmulo centralizado.

Yanis Varoufakis é o mais famoso proponente da tese de que as plataformas digitais estão destruindo o capitalismo. Segundo ele, "Amazon, Facebook, etc. não são mercados. Ao adentrar seus territórios, você deixa o capitalismo para trás. Nestas plataformas, um algoritmo decide o que está à venda, quem vê quais produtos, bem como a taxa que o dono da plataforma vai tirar do lucro dos capitalistas-vassalos, com permissão para comercializar na plataforma. Em suma, a atividade econômica está migrando dos mercados para estes feudos digitais".

Cédric Durand, professor da Sorbonne, diz que a passagem ao tecnofeudalismo acontece conforme a geração de renda passa dos meios materiais de produção para os intangíveis, que ofecerem "lucros econômicos, independentemente do esforço produtivo que se tenha realizado". O autor opõe a lógica industrial à das propriedades intelectuais, em que as grandes empresas de software se escoram.

Essas empresas teriam crescido sob a égide da ideologia californiana, que antes incentivava a inovação radical e o empreendedorismo, mas que hoje apenas bloqueia o caminho dos que tentam enfrentar o monopólio das big techs.

A servidão digital na qual sucumbimos, enquanto nos iludimos com as pretensas vantagens de passarmos os dias conectados, seria a principal responsável pela redução nas taxas de crescimento do PIB dos Estados Unidos e de outros países, nos últimos anos.

Testando a hipótese do tecnofeudalismo

Os males induzidos pelas big techs são uma das temáticas mais populares entre pais, educadores, intelectuais, psicólogos e economistas. Isso não acontece por acaso, mas porque diversas práticas sociotecnológicas têm aspectos nocivos, especialmente para subpopulações mais vulneráveis, como pré-adolescentes e pessoas solitárias.

Não há como negar que passamos a habitar espaços simbólicos sobre os quais as big techs têm poder quase irrestrito, nem que a imagem pública do capitalismo está em baixa globalmente. Estudo de amplitude inédita da Edelman (2019) mostrou que, para 57% da população global, "o capitalismo que existe hoje em dia faz mais mal do que bem". O que importa saber é se esta conjuntura está de acordo com os preceitos tecnofeudais ou se precisamos de um novo referencial para descrevê-la.

Redes sociais e browsers pelo prisma tecnofeudal

Redes sociais surgiram para conectar as pessoas horizontalmente, mas hoje servem mais para promover alocação eficiente entre produtores e consumidores de conteúdo. Os primeiros extraem valor de duas formas: elevando seu klout (impacto social) e com patrocínios; o YouTube distribui aproximadamente 50% da receita para os criadores, outras plataformas são bem menos generosas.

Os consumidores não pagam pelo serviço, quando este vem com anúncios. Algumas plataformas oferecem alternativas pagas. O modelo de negócios com anúncios é funcionalmente similar ao da TV aberta, ao passo que o pago, sem anúncios, inspira-se na TV a cabo.

A função originária e, de certo modo, ainda atual dos algoritmos baseados em aprendizado de máquina (IA) é otimizar automaticamente o processo de recomendação das produções dos próprios usuários, para que a diferenciação em relação às mídias tradicionais faça sentido, já que o conteúdo em si não costuma ser bem produzido, nem é confiável.

Em contraste, ao impulsionar vídeos ou posts, a marca ou influencer pode definir seu público-alvo usando região, idade e outros dados de perfil; ou seja, sai do domínio puramente algorítmico e passa a agregar filtros tradicionais de audiência, novamente emulando parte da lógica de compra de mídia da TV.

Não é que algoritmos sejam menos críticos na veiculação de anúncios em browsers e redes sociais; apenas é preciso ter em mente que as empresas de tecnologia contam com um recurso tradicional de direcionamento de mídia, que transfere parte da responsabilidade pelo sucesso da campanha para o anunciante, em contraposição ao que se dá com os conteúdos não patrocinados.

A ideia de que o consumidor gera valor sem remuneração enquanto refina os algoritmos de preferência está correta, mas precisa ser compreendida a partir de sua mecânica e escala. O TikTok tomou de assalto o mercado, entre outras coisas, porque tem os mais sensíveis algoritmos de recomendação existentes.

Uma reportagem do Wall Street Journal mostra que ele encontra preferências estáveis com 40 minutos de uso. Dali em diante, o processamento torna-se mais adaptativo, respondendo às mudanças no padrão preferencial.

As pessoas estão cedendo informações monetizáveis para as redes o tempo todo, mas isso acontece enquanto manifestam suas preferências pelos conteúdos gratuitos e fazem outras atividades do dia a dia, que são sorrateiramente monitoradas. É expropriação do valor implícito em atividades de lazer e outras mais, incluindo financeiras, e durante o acesso a dados de saúde.

A ideia de que há substituição do trabalho por essa forma de "servidão" choca-se com o fato de que a apropriação indébita de informações pessoais monetizáveis justamente acontece abaixo da linha da percepção, sem comprometer as atividades produtivas do consumidor; aliás, é no exercício destas que o valor dos dados se eleva.

Os adeptos do tecnofeudalismo sugerem que a relação entre plataformas e consumidores é de parasitismo, uma dinâmica de extração de recursos que debilita o hospedeiro. Porém, informações digitais não são efetivamente surrupiadas, tal como são as proteínas no interior de um animal ou a produção de um camponês medieval; elas são copiadas e utilizadas nos filtros de direcionamento de propagandas. Apenas no caso de criptomoedas acesso significa subtração.

Assim, a relação ecológica estabelecida nos nichos digitais é menos de parasitismo do que de comensalismo. Neste caso, uma espécie é claramente beneficiada, ao passo que o custo/benefício para a outra é próximo de zero, não porque ele seja neutro em todos os aspectos, mas porque os positivos tendam a contrabalancear os negativos.

Vale notar que uma pesquisa recente do Instituto Locomotiva mostrou que 75% das pessoas acham que as redes sociais fazem mais bem do que mal. A relação pode ser injusta do ponto de vista moral, mas não é análoga à servidão.

As plataformas da Meta atingem 3,7 bilhões de pessoas, o que é impressionante. No entanto, sua receita com anúncios vem caindo. Isso ocorre pela ascensão do TikTok, aliada a questões macroeconômicas que estão afetando os anunciantes e, acima de tudo, porque o IOS 14 da Apple implementou uma regra que limita a coleta de dados pessoais sem consentimento do cliente.

Nesta semana, foi a comissão de proteção de dados da União Europeia quem decidiu que a Meta não pode oferecer anúncios baseados em informações pessoais sem consentimento. A decisão, ainda não publicada, é dada como certa. EUA e outros estudam fazer o mesmo.

A súbita descoberta de que o metaverso é o futuro das relações sociais e do trabalho pelo antigo Facebook foi primariamente motivada pela percepção de que o modelo de plataforma digital é frágil no atual contexto regulatório e, sobretudo ecossistêmico, de hardware-software, em franca oposição à ideia de que seria o paradigma para os feudos contemporâneos.

O modelo vitorioso é o da integração entre dispositivos e mídias, hoje conhecido como phygital, que faz da Apple a empresa mais valiosa do mundo. Warren Buffet compreendeu isso e, entre 2016 e 2018, comprou US$ 36 bilhões em ações da companhia, que neste ano chegaram a valer mais de US$ 160 bilhões.

Correlativamente, os maiores riscos mercadológicos estão nestas conurbações phygital e na verticalização de serviços essenciais, típica dos superapps chineses.

Os espaços simbólicos em plataformas como TikTok e Instagram lembram praias privadas em que anunciantes pagam para disponibilizar guarda-sóis customizados, que os clientes utilizam de graça, enquanto se divertem num jogo que gamefica os itens do bar. Nestas praias, até as câmeras de segurança são patrocinadas. A grande questão é que ByteDance e Meta não são donas das faixas de areia em que rola a diversão.

As margens na área de tecnologia são enormes, porém isto não significa que os lucros independam do esforço, como afirma Durand. Os maiores investidores em P&D do mundo são: Amazon, Alphabet/Google, Huawei, Microsoft, Apple, Samsung e Meta.

Do mesmo modo, é incorreto assumir que as empresas de tecnologia apresentam as maiores taxas de lucro do mercado, o que seria esperado no modelo tecnofeudal, exclusivamente baseado em rent-seeking. Entre as maiores empresas dos EUA (S&P 500, 2022), a lista é a seguinte: ICE (49.4% de lucro líquido), Moderna (42.6%), Signature Bank (42.1%), CME (42.0%) e Visa (41%). Tirando a Moderna (biotecnologia), todas são financeiras.

Finalmente, o modelo de negócios puramente baseado no desenvolvimento de algoritmos definitivamente não obedece à lógica tecnofeudal. O objetivo de labs como o Open AI, criador do GPT-3 e Dall-E-2, sob os auspícios da Microsoft, é muito mais ambicioso do que o do time de produtos do seu principal patrocinador.

A ideia não é meramente equipar a Azure ou o pacote Office com o melhor dos chatbots, mas criar tecnologia e cultura que possam estar na base de praticamente todas as atividades humanas.

Ferramentas de conversação e outros tipos de IA, que funcionam por API e assim podem equipar qualquer website ou app do mercado, são os verdadeiros pivôs dos debates sobre o futuro dos relacionamentos e do trabalho, os quais não estão sendo conduzidos com referências às plataformas sociais e marketplaces, mas ao poder "rizomático" da inteligência artificial.

A questão é que, longe do chão de fábrica, a massificação da IA tem funcionado menos do que parece. O Google vai encerrar as atividades do Duplex Web, lançado com estardalhaço em 2019, para automatizar reservas em restaurantes, salões de beleza e afins, pois a adoção foi baixa.

Na Amazon, a unidade responsável pela Alexa está em processo de reestruturação, após um prejuízo multibilionário. "A Amazon descobriu que a Alexa é usada para bilhões de interações por semana, não obstante, como estas são típicas de um assistente digital, ao invés de ligadas a produtos, há poucas chances de monetização", comenta o pesquisador Malcolm Owen.

O fundo de verdade do tecnofeudalismo

A aquisição do Twitter por Elon Musk é um dos principais acontecimentos do ano. De uma hora para outra, o principal ringue verbal do planeta passou a ser propriedade de um sujeito instável e moralmente duvidoso.

Não há sinais de que plataformas estejam privatizando o poder estatal diretamente, mas é fato que Trump, Bolsonaro e outros políticos foram restritos por fake news, assim como é que o Facebook teve papel decisivo na eleição de ambos.

Ironicamente, a crítica tecnofeudal por vezes se alinha ao pleito destas pessoas; em outras, é o contrário. Em ambas, alimenta uma mitologia em que Zuckerberg é Thanos e Bezos, Darth Vader, o que não ajuda.

Ao fixar preferências com base em cliques, os algoritmos reduzem dramaticamente o mundo percebido, o que talvez seja mais danoso que a servidão tecnofeudal.

Os problemas sociopolíticos criados assim precisam ser enfrentados, bem como as práticas mercadológicas abusivas. Isso não significa que o desenho socioeconômico emergente possa ser estampado sobre uma matriz de séculos atrás. Simplesmente, não funciona.

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