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Com TikTok, domínio do Vale do Silício é ameaçado pela primeira vez, diz livro

Chris Stokel-Walker narra em 'TikTok Boom' como ascensão do app chinês se insere em disputa tecnológica entre EUA e China

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Mateus Luiz Camillo de Souza

Jornalista pela USP, é editor de Interação da Folha.

[RESUMO] Em novo livro, jornalista britânico discute como o TikTok, controlado pela chinesa ByteDance, virou um gigante das redes sociais e, ao colocar a hegemonia das big techs americanas em risco pela primeira vez, se tornou um ator relevante nas disputas tecnológicas entre China e EUA.

A recente compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk por US$ 44 bilhões (R$ 214 bilhões) chacoalhou o mundo dos negócios e da tecnologia, mas, se o dono da Tesla e da SpaceX quisesse comprar a ByteDance, dona do TikTok, teria que desembolsar provavelmente algo em torno de dez vezes esse valor.

O que é a ByteDance e por que ela vale tudo isso? A verdade é que conhecemos muito as big techs dos EUA (e o Twitter está um degrau abaixo de Amazon, Google, Meta e Apple) e pouco as chinesas.

Ilustração com logos do TikTok - Dado Ruvic/Reuters

Ao ler "TikTok Boom", de Chris Stokel-Walker, lançado no Brasil nesta semana pela Intrínseca, parte desse problema estará resolvido. Mesmo o leitor menos familiarizado com redes sociais sairá um conhecedor da história e dos dilemas enfrentados pelo TikTok, por sua dona, a ByteDance, e pela mente por trás disso, o chinês Zhang Yiming , 39, descrito pelo autor como um empresário comedido e focado.

O TikTok trouxe inovação, com um algoritmo superpoderoso que estuda o comportamento do usuário por meio de processamento de linguagem natural e tecnologia de visão computacional. Mudou a forma como o conteúdo é consumido e produzido atualmente, com vídeos curtíssimos, dinâmicos, vistos em looping, antes de ir para o próximo, em um ciclo vicioso.

Na era da atenção cada vez mais curta, a rede conseguiu fazer com que o usuário gastasse um tempo enorme em sua plataforma a partir de vídeos que são uma fração dos veiculados no YouTube, por exemplo. Assim como o Twitter surgiu como microblog, o TikTok nasceu como uma rede de microvídeos —e hoje já permite conteúdo de até 10 minutos.

Além disso, a rede chinesa soube aprender com erros passados cometidos por plataformas como o Vine –o "antecessor espiritual do TikTok", como define Stokel-Walker–, que acabou abandonado por influenciadores que se sentiram pouco prestigiados financeiramente e em termos de visibilidade.

Nada foi mais importante para a expansão do aplicativo, porém, que a decisão de separar o app em dois: na China comunista, ele é Douyin (lançado em setembro de 2016), e no Ocidente capitalista, TikTok (lançado em maio de 2017).

Eles se parecem tanto que Stokel-Walker menciona a dupla como "plataformas gêmeas separadas no nascimento". Todavia, possuem diferenças, sobretudo na submissão do primeiro ao aparato de controle chinês, o que deu ao TikTok um verniz de confiabilidade. A mais marcante é a aba "energia positiva" no Douyin, que mostra vídeos com propaganda do governo comunista.

A compra do aplicativo Musical.ly, em novembro de 2017, ajudou a importar usuários e ferramentas de lip-sync (sincronia labial, que permite ao usuário dublar a voz de seus artistas preferidos), um grande sucesso até hoje.

A entrada em cada país –hoje a ByteDance possui escritórios em 126 cidades pelo mundo– era acompanhada de um intenso estudo da realidade local e um forte investimento em publicidade. Só em 2019, chegou a gastar US$ 3 milhões (R$ 14,8 milhões) por dia nos EUA.

A pandemia, que prejudicou negócios mundo afora, foi proveitosa para a rede. Em 2020, o TikTok tornou-se o app mais baixado do mundo. Não havia muita coisa para fazer fora de casa, e ele representou um passatempo para milhões de novos usuários.

O TikTok mudou comportamentos, revolucionou a indústria musical, trouxe à tona novas formas de criatividade e criou influenciadores cada vez mais jovens.

Tudo isso fez o aplicativo entrar no seleto clube das redes com 1 bilhão de usuários ativos mensais, atingidos em setembro de 2021.

O TikTok foi alçado a um outro patamar, no entanto, quando virou o inimigo público número 1 do ex-presidente Donald Trump, que emitiu uma ordem executiva para banir o app dos Estados Unidos por supostamente repassar informações dos usuários americanos para serviços de inteligência da China.

No início, pareceu pirraça do republicano, que tinha tido um evento de sua campanha esvaziado por jovens tiktokers americanos que esgotaram os ingressos e simplesmente não apareceram.

A estridência do republicano contra o aplicativo, porém, faz parte de um discurso anti-China mais complexo, que compõe a atual geopolítica dos EUA. Prova disso é que o governo do democrata Joe Biden segue investigando o TikTok, mas de forma mais rigorosa, técnica e legal.

O TikTok tornou-se um personagem geopolítico, não restrito às disputas entre americanos e chineses. O app foi banido pelo governo da Índia, onde possuía nada menos que 200 milhões de usuários ativos mensais, após a morte de um jovem que sofreu bullying por se vestir de mulher.

O governo indiano alegou que o aplicativo e outras 58 ferramentas chinesas eram "prejudiciais à soberania, integridade e defesa da Índia, segurança do Estado e ordem pública". O pano de fundo mostra que China e Índia estão em uma disputa por territórios de fronteira.

Há algo mais profundo nessa conversa toda que quase ninguém ainda captou, pelo menos não na densidade que a conversa merece, e que Stokel-Walker faz tão bem.

"O TikTok se encaixa em uma história mais ampla de supremacia tecnológica entre os Estados Unidos e a China. O vencedor dessa batalha, seja qual for, também ganhará o futuro", escreve.

Foi a primeira vez que uma tecnologia surgida na China rompeu barreiras e ameaçou o domínio do Vale do Silício, que agora corre atrás do prejuízo, como aconteceu com o lançamento do Reels pelo Instagram, basicamente uma cópia do TikTok. Já o YouTube lançou o YouTube Shorts, um nome que entrega tudo.

As mudanças anunciadas pela Meta (empresa controladora do Facebook, Instagram e WhatsApp, entre outros) na seção de vídeos têm sido frequentes, o que mostra que a estratégia não está funcionando plenamente. Todos os aplicativos que a empresa lançou para competir com TikTok naufragaram.

O próprio Mark Zuckerberg, o maior barão das redes sociais, responsável por criar aquela que é a mais bem-sucedida de todas, o Facebook e seus 2,6 bilhões de usuários, e tendo no portfólio as aquisições de Instagram e WhatsApp, sentiu o golpe.

Zuckerberg chegou a reunir-se com Trump, e o teor da conversa nunca foi revelado. O pai do Facebook cita constantemente o app rival em reuniões com investidores. Menções nominais costumavam ser raras nesses encontros, mas o TikTok demanda ações drásticas.

Algumas não tão éticas.

O jornal The Washington Post revelou em março de 2022 que a Meta bancou uma campanha para difamar o TikTok nos Estados Unidos. O aplicativo chinês é descrito como um lugar perigoso para os jovens americanos, em que aparecem tendências que estimulam comportamentos nocivos.

Ainda que haja base concreta para tal afirmação, a Meta tenta ignorar que o próprio Instagram tornou-se potencialmente danoso para a saúde mental de adolescentes ao levá-las a comparar suas imagens com as de outras usuárias. Reportagem do Wall Street Journal no ano passado revelou que a empresa teve acesso a relatórios que mostravam que a plataforma deteriorava a autoestima ligada à aparência de um terço das adolescentes, mas pouco ou nada fez sobre isso. Ações mais efetivas começaram a ser anunciadas por Adam Mosseri, chefe do Instagram, somente após o escândalo vir à tona.

É nesse cenário, aliás, que o Facebook mudou de nome para Meta. O nome, alusão ao metaverso, é uma tentativa de Zuckerberg de pegar o bonde da inovação em um momento em que a tecnologia ainda é bastante incipiente –não há sequer uma definição nítida do que seja o metaverso ou de qual uso prático terá.

Enquanto isso, o TikTok tem seus próprios desafios. Continuar crescendo, diversificar seu público e seguir inovando são alguns deles. No campo geopolítico, enfrentar a desconfiança do mundo ocidental –e, muitas vezes, uma certa sinofobia– perante o uso de dados dos usuários e sua relação com o governo chinês.

A ByteDance garante que nunca repassou informações sensíveis de seus usuários. Até hoje nenhuma prova concreta que embase essas acusações foi obtida, o que também não significa que nunca tenha ocorrido.

A censura do governo central de Pequim de fato existe e chegou a banir um app da ByteDance, o Toutiao, de compartilhamento de memes, por ter ido além do limite tolerado pela ditadura. A desconfiança de que o TikTok seja usado como soft power chinês será duradoura.

Ao longo de todo o livro, Chris Stokel-Walker, um autor inglês, mostra argumentos para os dois lados e tenta manter-se o mais neutro possível, no que conquista um relativo êxito. A resposta ainda é uma página em branco, que um dia deve ser escrita.

O duelo de titãs tende a continuar. Zhang, descrito como "ocidental demais para a China e chinês demais para o Ocidente", pensa grande e almeja que a ByteDance seja tão sem fronteiras quanto um Google, no que não está tão longe.

Ele soube ser visionário quando percebeu que o smartphone seria dominante no consumo de informação graças à internet móvel e criou um app que faz uso sofisticado de inteligência artificial, tornando-se inovador no sentido mais preciso da palavra.

"Se as primeiras décadas da internet foram moldadas com base em um modelo americano, o futuro pode vir a se parecer, em vários aspectos, com a maneira como os chineses interagem com a tecnologia", escreve Stokel-Walker.

É isso que a leitura de "TikTok Boom" faz refletir. Talvez devêssemos estar mais preocupados com o futuro da ByteDance que com o do Twitter.

Chris Stokel-Walker, 32

Jornalista britânico, escreve regularmente para veículos como Wired, The Economist e Insider. Autor do livro "YouTubers: How YouTube Shook Up TV and Created a New Generation of Stars" (YouTubers: como o YouTube abalou a TV e criou uma nova geração de estrelas) e especializado na cobertura de tecnologia e redes sociais, principalmente YouTube e TikTok.

TikTok Boom: um Aplicativo Viciante e a Corrida Chinesa pelo Domínio das Redes Sociais

  • Preço R$ 59,90 (304 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autor Chris Stokel-Walker
  • Editora Intrínseca
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