Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Como pessoas engraçadas nos fazem rir

Paulo Betti e Hélio de la Peña, criadores de alguns dos mais memoráveis personagens do humor brasileiro, contam de onde vem a graça

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O artigo anterior desta coluna trouxe um balanço sobre o que torna as coisas engraçadas. A teoria atualmente dominante diz que isso acontece quando algo representa uma violação benigna do status quo, o que pode se dar por evocar um senso de superioridade/inferioridade controlada, revelar contradições no jeito de ser das pessoas ou promover a descompressão emocional.

Péricles Maranhão, cartunista e criador do personagem Amigo da Onça. - Reprodução

Mas, afinal, como as pessoas que conseguem nos fazer rir chegam lá? O artigo de hoje mergulha nesta questão com a ajuda de dois dos mais celebrados criadores de tipos hilários do país.

Paulo Betti: Em termos gerais, as incongruências funcionam melhor do que a superioridade —ainda que as pessoas também achem graça numa tropeçada bem dada e outras situações em que alguém se dá meio mal. Agora, por que as pessoas têm tanta vontade de rir em velório? Porque elas ficam excitadas com o fato de estarem vivas. Elas querem se manter diferentes daquela pessoa que está ali parada, morta, que gera temor. Isso mostra a força da descompressão emocional, desse princípio freudiano.

Hélio de la Peña: Há uma variação de eficácia em função do meio. Na TV, representação estética da personagem e abrangência temática são muito importantes. Paródias de pessoas em evidência, quando bem feitas, são sucesso na certa. No stand-up, a relação no fundo é de identificação. O que dá mais certo é dialogar com aquele público em cenas que mostram que você entende quem está ali. Stand-up é ato de cumplicidade. Já o humor escrito é mais lógico, são os silogismos e outras manobras de pensamento que tornam as coisas engraçadas, como as tornam inteligentes.

O encantamento das coisas engraçadas é como o das pipocas que estouram de modo desordenado quando seu limiar energético é atingido.

Paulo Betti: Eu penso nisso e lembro da Tatá Werneck, que é engraçada pra burro. Ela tem uma velocidade natural que funciona. A graça é como se fosse um curto-circuito, o resultado de um conflito de neurônios que só se resolve porque, justamente, as coisas ficam engraçadas.

O humor é a única forma de comunicação que visa um reflexo. E que reflexo! "A risada é caracterizada por uma série de pulsos curtos, baseados em vogais, cada qual com cerca de 75 milissegundos de duração, que são repetidos em intervalos regulares, separados por 210 milissegundos. Não há uma vogal específica definindo todas as risadas, mas sim padrões de uso de seu som. Assim, risadas podem ter a estrutura há-há-há-há ou ho-ho-ho-ho, mas nunca há-ho-há-ho" (Provine, 1996, p. 39).

Hélio de la Peña: A risada é a grande recompensa que você dá e recebe em um trabalho bem feito.

Há alguns anos, orientei um doutorado sobre processamento cerebral de diferentes estruturas narrativas. Conforme demonstramos, a comédia é a que possui a assinatura neural mais bem definida. Humor e terror medem-se com a régua das reações fisiológicas, ao contrário de drama e romance. Isso contribui para que sejam tratados como manifestações artísticas menores, exceto quando são erigidos ao panteão das grandes obras da humanidade, o que não deixa de ser engraçado.

A outra parte é muito mais profunda e relevante. O pensamento ocidental foi formado na esteira das visões de mundo de Platão e seguidores. "O que você sabe sobre a filosofia platônica está provavelmente certo. Ele é famoso por acreditar no abstrato, nas formas imateriais: em ideais de justiça, beleza e bondade que existem fora do espaço-tempo. Para Platão, o mundo material é de segunda categoria, e a alma é imortal", escreveu Kieran Setiya, professor de filosofia do MIT.

Platão era rico, metafísico e teve toda a sua obra preservada. Sua antítese é Diógenes, mendigo de obra não formalizada, que Setiya apropriadamente chama de o primeiro comediante de stand-up da história.

Pela linha da eloquência fomos condicionados a tomar a autoridade discursiva como sinal de inteligência. Mais falas elaboradas, menos evidências. E menos criatividade. Diógenes não tinha interesse por nada disso, nota Setiya.

Na ocasião em que Platão definiu o ser humano como um bípede sem penas, lembrou-se de levar um frango depenado até a academia. Em uma discussão sobre a realidade do movimento, levantou-se e foi embora. Capturado e escravizado, foi inquirido pelo mercador de escravos: você é bom no quê? Ao que respondeu: "Mandar nos outros. Pode espalhar por aí, no caso de alguém querer comprar um senhor".

O humor é tido como gênero expressivo menor porque seu papel como modelo de ponderação, irredutivelmente empírico e desafetado, foi assim considerado ao longo dos séculos. Fosse outro o caso, certamente teríamos algum tipo de pensamento hilário contemporâneo. Aliás, esse é um dos caminhos mais interessantes que consigo imaginar para o pensamento ocidental.

A crença no discurso bem concatenado como manifestação certeira da potência intelectual e acuidade intencional de quem o produz é a alegoria que sustenta a ilusão da consciência de máquina. Muita gente está em pânico, pensando que a máfia dos robôs falantes vai dominar o mundo, por acreditar piamente nessa alegoria.

Tivéssemos um paradigma intelectual de natureza hilária, que nos permitisse adicionar riso à compreensão das mudanças em curso, estaríamos bem melhor. "A risada demole o medo e a piedade frente a um objeto, tornando-o parte do mundo familiar, o que prepara o terreno para sua investigação livre" (Bakhtin, M., 1981, p. 231). Ao invés disso, a regra é clara: ou algo é sério, ou não deve ser levado a sério. E assim reinserimos o humor na caixa de diversões.

A inspiração para as coisas engraçadas

Longe da profundidade às avessas do hipotético sistema de pensamento hilário, um apontamento recorrente dos teóricos do humor é que é muito mais difícil fazer as pessoas rirem do que ficarem tristes ou preocupadas; o que é de se entender, dado que as emoções negativas têm prevalência sobre as positivas, tanto em termos fenomenológicos quanto evolucionários. Porém, não é só.

Particularidades dos territórios preferenciais do humor compõem essa dificuldade. Nada grandioso é engraçado, nada que aliene demais o corpo do entendimento, nada previsível como a morte ou surpreendente demais, como a vida. A graça tem tamanho. É PP.

O cômico é mais grupal; já o trágico é mais individual. Aquele costuma ter personagens de baixa estatura social, lançados à sorte, em busca do prazer. Este prioriza os tipos que se destacam pelo caráter, em estruturas narrativas deterministas, onde a dor prevalece. Personagens cômicos sobrevivem, enquanto os mais trágicos falecem, o que lhes confere profundidade instantânea.

O dilema do criador e da criatura

Paulo Betti: O Péricles era alcoólatra e triste, mas ele criou o personagem-símbolo do Brasil: o Amigo da Onça, um garçom bem típico, com seu cabelo emplastado, que sempre fazia maldade. A charge do Amigo da Onça fechava a revista "O Cruzeiro". Um sucesso tremendo. O cego queria atravessar a rua, e ele o orientava a fazer justamente quando iria passar o caminhão. O Amigo da Onça, acima de tudo, é o inimigo do homem. Pois o Péricles se matou, asfixiando-se com gás, em casa. Ele selou as janelas e, perto da porta, deixou um bilhete: "não risquem fósforos". Se fosse o Amigo da Onça, diria o oposto. Ou seja, ali ele quis matar a criatura, mas ela sobreviveu à morte do autor, como era bem o seu estilo. Décadas depois, o Angeli matou a Rê Bordosa, e o Quinoa Mafalda, para evitarem isso. Entenderam bem a lição.

Mas, afinal, como as pessoas engraçadas geram as suas sacadas?

Hélio de la Peña: Essa questão não pode ser respondida só pelo lado da criação. Há também o do legado que precisa ser superado, pois a mesmice é sem graça. O Seinfeld mostra isso no documentário "Os Bastidores da Comédia" (2002). Depois do sucesso na TV, ele quer voltar aos palcos, mas sente dificuldade. A primeira medida que toma é enterrar seu material antigo. Dez anos de boas sacadas num funeral, com caixão e tudo. A lição é que se livrar é importante. Depois, ele vai peregrinando pelos bares, fazendo aparições de cinco minutos, um número por vez, para sentir o que dá certo, até o momento em que algo de fato funciona e ele se pergunta: por que a gente não consegue ser engraçado toda vez? Ali fica claro que o melhor humor vem desse mistério desprendido.

A tristeza das pessoas engraçadas

Paulo Betti: Não sei se as pessoas engraçadas são mesmo mais tristes, mas, em geral, elas têm pelo menos uma espécie de bipolaridade, que as põe para baixo em certos momentos. O Arthur de Azevedo retratou isso muito bem em "O Mambembe", de 1904, uma peça sobre uma trupe teatral que excursiona e enfrenta todo tipo de dificuldade, na qual o humorista vive deprimido, sentindo falta da família e sofrendo pela própria existência.

Perfis hilários e perfis cerebrais

Hélio de la Peña: Existe uma diferença de estilo entre quem vem do texto impresso e dos roteiros e quem vem dos palcos. Leandro Hassum, por exemplo: você o convida para alguma coisa com a certeza de que vai ser diversão na certa. Ele é naturalmente hilário, assim como é o Adnet e como era o Paulo Gustavo. Esses são caras que entretêm só por existirem e isso fica claro nos shows deles, que envolvem coisas que simplesmente deram certo no palco. De improviso. Já os humoristas mais cerebrais funcionam melhor quando escrevem todas as cenas e seguem aquilo que o Woody Allen falou: "o bom improviso é aquele que foi exaustivamente ensaiado". Eu sou desse segundo tipo e prefiro analisar cada ideia à exaustão.

Paulo Betti: Eu me interesso muito pela passagem entre os gêneros. Tem muita coisa para ser explorada ali. Em "Feliz Ano Velho", o elenco aprendeu a lidar com isso. A Lilia Cabral precisava se conter para não fazer as pessoas rirem demais em certos momentos, pois isso poderia afetar a dramaticidade da cena seguinte. Nos últimos nove anos, faço uma peça chamada "Autobiografia Autorizada". Costumo falar que é 50% comédia, 25% drama e 25% poesia. Minha irmã, Teresa, era uma pessoa muito engraçada. Ela tinha trejeitos, esgares. Ela fazia coisas do nada que me faziam rir, as quais eu tento trazer para os personagens, o que acaba puxando-os para a comédia. Também gosto de tipos. O prefeito que fala "sastifação" ao invés de "satisfação" e se acha, o baiano que tem um sotaque que com certeza não é baiano, nem é de lugar algum; gosto de dizer hortel ao invés de hotel porque hortel soa mesmo bem melhor. Essas coisas.

Intenção e resultado

Hélio de la Peña: Com o tempo, dá para ter uma boa ideia do que pode dar certo no palco, no texto ou nas telas. Quando não funciona, muitas vezes, a questão está mais na tradução daquilo que você tinha em mente do que no insight em si. Ou seja, a sacada está lá, mas na hora de a comunicar, o que a torna engraçada não aparece. Aí é preciso voltar ao texto e trabalhar essa relação entre a intenção e a ação. O contrário também existe: de repente, o público começa a rir num lugar inesperado. Nesses casos também é importante parar para entender o porquê, pois ali pode se esconder algo muito maior.

Arthur Berger dedicou sua vida a entender isso. Segundo ele, quase tudo o que se produz de engraçado, tanto em termos profissionais quanto amadores, envolve as mesmas 45 técnicas, que podem ser divididas em apenas quatro categorias: figuras de linguagem, lógica, identidade e ação.

Figuras de linguagem: uma das principais técnicas é a alusão. Por exemplo, em "Judite", Fábio Porchat aparece pintado de azul, como um cliente que tenta cancelar um plano de telefonia, em alusão às dificuldades de cancelamento impostas pela TIM (e outras), que tinha o Blue Man Group como garoto-propaganda. A graça não vem apenas do reconhecimento da TIM como alvo, mas da inversão de papéis, que permite à audiência se vingar daqueles que lhe frustraram, o que ocorre por meio de uma segunda técnica linguística, o sarcasmo.

Lógica: o desbaratamento da lógica, por meio de paralelos insustentáveis e outros recursos, tende a levar ao riso. A peça "A Cantora Careca", de Eugène Ionesco (1949), traz um bom exemplo. Sr. Smith: "Eis uma coisa que não entendo. Os jornais sempre trazem a idade das pessoas mortas, mas nunca a dos recém-nascidos. Isso não faz sentido". Ao que a sra. Smith: "Eu não tinha pensado nisso".

Outra técnica é a subversão de entendimentos. Em uma passagem do stand-up "Levando o Caos" (2020), Maurício Meirelles discorre sobre o porquê de não ter autoridade e poder servir de exemplo de retidão para o filho: "Deus deveria dar filho para quem goza fora, pois isso sim é mostrar comprometimento".

Identidade: excentricidade, caricatura, personificações e afins dão o tom principal aqui. Em "Sebastião, codinome Pierre", Jô Soares faz uma sátira de natureza caricatural de artistas brasileiros exilados na Europa. Sebá seria o último dos exilados, com um plano de retorno constantemente frustrado pelos percalços apresentados pela sua esposa Madalena. A graça advém da soberba do personagem, que vivia de bico na França, e não dizia ‘coisa de louco’, mas ‘chose de loque’, em um francês macarrônico (falso cognato, mais especificamente). Como pano de fundo, o quadro ironizava a situação econômica do país, o projeto da anistia e a receptividade daqueles que supostamente estavam à espera dos últimos exilados.

Ação: situações dinâmicas, muitas vezes confusas, em que as expectativas são subvertidas fisicamente estão entre as preferidas do humor. "A Pantera Cor-de-Rosa" (1963) traz uma sequência em que o carro com o inspetor Clouseau (Peter Sellers) é perseguido por dois gorilas e uma zebra (respectivamente, dois motoristas e uma dupla em um disfarce de zebra), o que é acompanhado com indiferença por um morador local. A cena foi rodada em torno da Piazza della Repubblica (Roma) e é tida por muitos críticos como a melhor cena de perseguição da história do cinema.

Para onde vai o humor?

Hélio de la Peña: A gente vem de uma época em que as famílias se reuniam na frente da TV e era ali que se definia o grande papel do humor na sociedade brasileira: colocar todo mundo no mesmo barco, o que é sinônimo de reter uma plateia completamente heterogênea. Isso mudou por causa dos algoritmos e do celular. O humor está se tornando cada vez mais nichado —esta é a grande tendência. Uma nova geração de humoristas de enorme sucesso surgiu por isso. O exemplo máximo é o Whindersson Nunes, que gravava sem produção alguma, mas tinha talento e por isso foi reconhecido por um público carente de quem dialogasse com ele. Outra coisa que mudou foi a noção de autoria. Por exemplo, quem foi a primeira pessoa que botou o Neymar rolando em todos os lugares, depois que ele caiu na Copa da Rússia? Jamais saberemos. O anonimato da criação popular, do meme, aprofunda o humor tipicamente brasileiro, que hoje está em todas as partes. E isso é muito bom.

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