Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Álvaro Machado Dias

O que torna as coisas engraçadas

Em debate sobre humor, estão em jogo os próprios ideais de sociabilidade, que as partes em conflito acreditam defender em nome da felicidade geral da nação

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"A comédia é metade da vida de acordo com o teatro" (Hurley, Dennett e Adams, 2011, p. 1). Mas, afinal, o que torna as coisas engraçadas ou sem graça? E, por que isso é assim?

A percepção de que alguma coisa é engraçada tem como aspecto distintivo o prazer, não de qualquer tipo, mas de um que leva a reflexos faciais e corpóreos, acompanhados de sons guturais, via de regra mais intensos em situações sociais do que nas de isolamento.

Há pouco mais de uma década, descobriu-se que estas reações não são exclusividade humana. Chimpanzés, gorilas, orangotangos, golfinhos e até ratos têm seus correlatos de risada. Ah, sim, cachorros parecem ter também. Em todos esses casos, gargalha-se pelo contato físico, um padrão que os nossos bebês esbanjam e que nessas outras espécies serve para balizar o caráter pacífico da interação.

O ator Charles Chaplin em cena do filme "Tempos Modernos" (1936), dirigido por ele mesmo - Divulgação

Humor não é isso. A reação às coisas engraçadas não parece caminhar internamente pela rota das cócegas. O riso, ao que tudo indica, é mera via comum. O resto é com a gente.

Vivemos uma era de tantos humoristas que às vezes nos esquecemos de que a manifestação mais comum do humor é solitária. A pequena gafe de que lembramos espontaneamente, a cena insólita no trânsito, o sonho que horas antes parecia acachapante, a própria vida.

Na falta de um nome, podemos chamar este de humor de sinal fraco, em alusão ao fato de que raramente é acompanhado de uma risada mais forte —é o hilário silencioso.

Ele se contrapõe ao humor de sinal forte, que em 10 de agosto de 2017 nos privou da convivência de Sharon Regoli Ciferno, a mulher que morreu de tanto rir, quer dizer, a mais recente. Antes houve Ruth Greenough, Alex Mitchell e mais um povo, até chegar a Crisipo de Solos, que, segundo a lenda, iniciou a tradição.

"O humor é uma atividade humana universal que a maioria experimenta muitas vezes no curso de um dia típico. Ao mesmo tempo, há fatores culturais óbvios influenciando a maneira como o humor é usado e as situações em que é considerado apropriado rir" (Martin e Ford, 2018, p. 30).

Invariantes culturais com altas taxas de manifestação diária quase sempre têm papel adaptativo. Daniel Dennett e colaboradores dizem que a do humor é reforçar a detecção de falácias e outras formas de desacoplamento à realidade.

A gente acha graça nas coisas que são, mas não deveriam; nas que começam de um jeito, mas desembocam em outro; nas pequenas hipocrisias escondidas debaixo da saia das grandes verdades e assim por diante, não porque elas tenham algo de engraçado em si mesmas, mas porque essa experiência positiva, a graça, nos estimula a desvendar situações análogas, para que possamos receber nova injeção mental do mesmo coquetel neurotransmissor, o que cegamente nos conduz a pensar cada vez melhor.

Preservado o fato de se tratar de uma proposição de filósofos que, por coincidência, atribui ao humor função parecida com a da própria filosofia, parece uma boa teoria. Realmente, tanto a capacidade de rir quanto a de fazer rir estão associadas à inteligência, aqui entendida como capacidade crítica, de quem não quer selar pactos eternos com o status quo.

Além de serem meio viciantes.

Teorias do humor

Teorias que procuram explicar por que as coisas são engraçadas existem há bastante tempo. Via de regra, tentam abarcar todo tipo de manifestação da graça, mas, como em uma legítima piada pronta do Zé Simão, cada uma descreve um pedaço, o que as obriga à convivência forçada.

A mais antiga família de teorias é a da superioridade, que, como o nome sugere, preconiza que a graça vem do sentimento de ascendência sobre alguém ou um grupo.

Schadenfreude. Essa é a explicação padrão para a graça das tiradas autodepreciativas e piadas de português, que sintomaticamente não são do período colonial, mas da segunda metade do século 19, um tempo em que muitos portugueses pobres vieram para cá em busca de trabalho, como esclareceu Giuliana Miranda, em coluna de 2015.

O principal nome desta linha é Hobbes, segundo o qual "a paixão da risada não é nada mais do que a glória inesperada emergindo da concepção súbita de que há alguma eminência em nós mesmos, na comparação com enfermidade dos outros, ou com a nossa enfermidade pregressa" (Chafe, 2007, p.141).

Uma variação é a teoria da inferioridade de Robert Solomon, que considera a graça do humor autodepreciativo um reflexo do reconhecimento de nossas limitações cognoscentes e existenciais. Seja como for, os contraexemplos a estas visões do humor na esfera do poder são abundantes. Seinfeld que o diga.

A segunda linhagem teórica aposta no alívio como fonte de toda a graça e, principalmente, de todo o riso. A ideia geral, desenvolvida por Herbert Spencer, é que a energia psíquica se acumula, tanto à luz de interações, quanto na vida como um todo.

O riso seria o desbloqueio energético de uma experiência que se torna prazerosa na descarga, sem trocadilhos. Segundo Freud, que propôs uma famosa variação, a energia investida para reprimir os desejos e processar intelectualmente a narrativa torna-se dispensável pela gag, a gestalt da piada, gerando prazer como alívio.

A teoria ajuda a entender o papel da tensão na geração da graça —por exemplo, quando humoristas improvisam com a plateia. Freud também explica por que tanta gente acha graça em piadas machistas e naquelas que giram em torno da orientação sexual dos outros, especialmente quando esta não é explícita.

Por outro lado, é incapaz de esclarecer a emergência do humor instantâneo, além apontar para decorrências questionáveis, como a de que as pessoas mais reprimidas são as que mais riem em shows de humor.

Existe um aspecto comum entre essas duas teorias: elas não adentram o universo dos arranjos ideativos específicos para definir o que torna as coisas engraçadas.

Para Hobbes, isso emerge do próprio senso geral de poder, que encontra uma via ao riso nessas situações assimétricas, como um iluminador que lança luz sobre a cena que mais lhe interessa, no palco da consciência.

Para Freud, é a energia psíquica que exerce esse papel, vindo à tona como a água que encontra seu caminho por fendas subterrâneas e jorra entre os ladrilhos do banheiro.

Como disse John Morreall, um dos grandes no assunto: "as duas teorias rivais são inadequadas para capturar a essência do humor porque focam em benefícios incidentais da diversão, ao invés de explicarem o que há nessas coisas divertidas que as torna engraçadas" (Kulka, 2007, p. 321).

A primeira linhagem de teorias a se debruçar sobre essas articulações ideativas é a da incongruência, que por isso se tornou mais popular do que as anteriores. A noção mestra é que a graça emerge da dissonância entre as expectativas formadas e a realidade, como dizia Kant, ou entre a percepção e nosso entendimento racional, como propôs Schopenhauer.

No caso do humor instantâneo, a dissonância decorreria das nossas preconcepções, enquanto as histórias engraçadas abririam espaço para a subversão de expectativas ad hoc, construídas na narrativa.

Esta é uma maneira de ver a graça que se apoia fortemente na surpresa incongruente, que alguns apontam como a própria base do nosso senso estético, como na perspectiva de que o valor da arte conceitual define-se por sua capacidade de romper expectativas à luz do cânone.

É nesta generalidade que começam os seus problemas. A teoria da incongruência não explica a razão de certos arranjos dissonantes tornarem as coisas engraçadas, enquanto em outros as tornam intelectualmente estimulantes.

Ela sugere a perspectiva de que uma piada perde a graça quando conhecemos o seu desfecho, coisa que nem sempre se verifica. Finalmente, a conotação mais básica da dissonância na nossa vida é negativa. Quando nossos planos dão errado, não achamos nem um pouco engraçado, como Tomás Kulka (2007) notou. Isso sugere que não é qualquer tipo de incongruência que funciona como humor.

Violações benignas

A principal teoria contemporânea sobre o que torna as coisas engraçadas preconiza que isto ocorre quando as situações envolvem violações benignas. Violação, no caso, é incongruência com uma pitada de afeto, enquanto o caráter benigno indica que não é intensa ou grave a ponto de gerar dolo.

Um dos processos que tendem a gerar a sensação de que uma narrativa é benigna é a distância psicológica. Os criadores da teoria, Peter McGraw e Caleb Warren (2010) mostram que, quando acontece uma tragédia, piadas sobre o assunto tendem a surgir de maneira tímida e a serem recriminadas.

Groucho Marx em cena do filme "Uma Noite na Ópera" - Divulgação

Conforme o tempo passa, vão ganhando popularidade, até atingirem um pico, a partir do qual declinam. Não existe uma relação linear entre ser benigno e ser engraçado, mas sim uma zona ideal entre o cruel e o morno, cuja apreensão depende de timing social. Isso explica porque o restaurante que encenou o meme do caixão, em maio de 2020, escandalizou o país, ao invés de fazer rir.

Em sua forma ampliada, o princípio é que a graça emerge quando as coisas são erradas e ‘não tão erradas’ ao mesmo tempo, uma experiência que a distância psicológica propicia, assim como a exposição de pequenas hipocrisias, a zoeira não agressiva e outros fenômenos.

Uma característica da teoria é considerar que os fatores determinantes da linha de corte do benigno são críticos à experiência individual da graça. Estes não costumam ser diretamente acessíveis à consciência, o que faz com que as pessoas sintam que o seu termômetro seja universal, assim como suas preferências temáticas, as quais podem ser divididas em: preferência por piadas simples versus complexas, pessoais versus impessoais, e sexuais versus não sexuais.

Em geral, pessoas mais extrovertidas têm uma queda por piadas mais simples e pelas sexuais, enquanto os introvertidos preferem piadas mais complexas e não sexuais (Eysenck, 1942).

Aderência a princípios morais e crenças sobre o que se espera da sociedade são variáveis importantes a serem incorporadas nesse quadro. Assim, por exemplo, um(a) extrovertido(a) que recrimina manifestações sexistas irá divergir.

Também não se pode deixar de fora o afã de alívio, que rebaixa o limiar ao riso, e a projeção hierárquica pela qual se enxerga a violação, que é determinante para o senso de pertencimento. Sentir-se parte não torna as coisas diretamente engraçadas, mas as torna mais relevantes, aceitáveis e divertidas, o que é um começo e tanto.

Por exemplo, do ponto de vista de um adulto qualquer, um professor dançando sobre a cadeira em uma sala de aula escolar tende a ser cômico; já um aluno fazendo o mesmo tende a ser lamentável.

A hipótese primária é que o professor persegue formas de se conectar à turma e se excede nisso, caindo no ridículo, de onde surge a graça, enquanto o aluno quebra regras fundamentais de respeito e convivência, o que é inadmissível.

Do ponto de vista de um pré-adolescente, a percepção inverte-se: o professor torna-se patético, enquanto o aluno converte-se em autor de uma violação benigna.

Finalmente, em termos reacionais, é de se esperar que o pré-adolescente ria mais da situação que tem o seu par como protagonista do que a recíproca porque, no contexto em foco, tende a se sentir mais contido normativamente do que o professor.

Como se nota, esta maneira de ver o humor rearranja as principais ideias apresentadas em uma abordagem mais inclusiva, que flerta com a moralidade, pela noção de limiar ajustável da permissividade. Se é assim, pode explicar o que faz certas coisas deixarem de ser engraçadas.

Piadas flopadas, paradigma de nossa era

Em 28 de julho de 2017, João Doria, então prefeito de São Paulo, publicou uma foto no Twitter, com um grupo de chineses fazendo o V, símbolo de uma de suas campanhas, junto à legenda: Acelela São Paulo. A repercussão foi negativa a ponto de sua equipe soltar um pedido desculpas.

Ali já estava claro que o cenário do humor havia mudado. Em que sentido?

A resposta-padrão é dizer que se tornou inaceitável fazer piada com grupos minorizados, expressão forjada para acomodar o fato de que esses podem representar maiorias. Essa resposta não está correta.

Tanto é assim que Dave Chappelle faz piadas livremente com negros, Amy Schumer faz o mesmo em relação às mulheres, Russell Peters caçoa de imigrantes indianos ou descendentes que, como ele, moram na América do Norte e assim por diante.

Outra, é dizer que deixou de ser aceitável falar de qualquer outro grupo que não seja o seu. Essa é claramente equivocada, tanto é assim que o show de Hannah Gadsby envolve várias tiradas com homens brancos heterossexuais.

A grande mudança cultural foi a inversão da atitude-padrão sobre as piadas orientadas pelo senso hobbesiano de superioridade, expresso na ideia de "eminência em nós mesmos, na comparação com enfermidade dos outros", que até há pouco era vista como benigna.

É a assimetria intrínseca de poder que faz com que piadas com héteros brancos sejam aceitáveis de forma geral, enquanto suas variações não o sejam. Ela também que explica por que comediantes que tiram sarro de todos, especialmente quando o fazem de improviso, sejam mais tolerados do que aqueles que têm cenas fixas tirando sarro de gays, pessoas com deficiência e outros.

A questão de fundo não é que as pessoas caçoadas podem ficar ofendidas, como provado pelos que tiram sarro do seu próprio grupo, mas que o humor pode precipitar a disrupção de impulsos hostis em participantes do grupo majoritário. Paradigma do alívio em sua versão freudiana.

A detecção de que este princípio está em ação é a principal razão pela qual a contrarreação tende a ser acalorada. A sensação é de que são vistos como seres pouco confiáveis, os quais precisam ser monitorados de perto, o que é experimentado de maneira ofensiva. Do mais, assinalam que o detector de desvios é pouco inteligente.

Por exemplo, Andrew Schulz conta que passou um tempo elaborando uma piada sobre mulheres oprimidas pelo mundo. A sua questão era: qual o aspecto comum que consigo identificar nesses países e que poderia servir de premissa narrativa?

Eis que encontrou: comida. Os países mais igualitários do mundo têm as piores comidas. De fato, ninguém sai para comer em restaurante sueco ou canadense; as pessoas querem homus, sushi e pizza siciliana.

Daí nasceu a piada, cuja graça depende do fato de que comida boa como elemento convergente é falacioso (raciocínio abdutivo), posto que sua qualidade não decorre da opressão, mas da tradição de maneira mais ampla.

Uma avaliação pouco distanciada pode ignorar este aspecto e concluir que Schulz está dizendo que a opressão feminina é necessária para a boa culinária no mundo, sendo assim positiva, quando na verdade ele está tirando sarro de quem compra a falácia. Em contraste com este exemplo, há outros em que a conclusão é puramente derrogatória mesmo.

Jacques Tati (à dir.) em cena de "As Férias do Senhor Hulot" (1953) - Divulgação

A avaliação de que os impulsos hostis podem aflorar de um lado, a sensação de estar sendo tratado como pouco confiável do outro, além de divergências hermenêuticas de ambos, são as linhas de força que fazem do humor um dos maiores campos de batalha e significação da atualidade.

Mas há uma esfera mais fundamental nessa história. A psicologia experimental mostra que pessoas hostis a um grupo tendem a naturalizar a discriminação após serem expostas a piadas que desqualificam seus representantes.

Por exemplo, homens mais hostis a mulheres tendem a naturalizar o sexismo depois de shows de humor em que estas são caçoadas, nos Estados Unidos (Ford e Lorion, 2001) e na América Latina (Gutiérrez et al., 2022), bem como têm mais chance de recomendar cortes de verbas para as mulheres em financiamentos simulados de projetos, após algumas tiradas (Boxer, et al., 2007).

O mesmo padrão é observado em relação a negros (Donald, et al., 2018), gays (O’Connor et al., 2017) e outros grupos.

Por outro lado, tanto essas mesmas piadas não afetam a atitude daqueles que não compartilham a hostilidade, quanto a duração do efeito captado nesses experimentos não está estabelecida. Isso inspira o contra-argumento de que piadas derrogatórias não geram impacto nefasto relevante, dado que os hostis tendem a buscar fontes confirmatórias de seus vieses o tempo todo.

A tréplica é que a questão transcende a fugacidade das manifestações pontuais, pois o que importa é o fortalecimento da permissividade entre os hostis e a normalização do discurso na sociedade como um todo.

Tal argumento é rebatido por um mais geral, que assume que uma sociedade normatizada pelo politicamente correto é mais tensa, limitada e triste do que o seu duplo, o que é rejeitado na base de que tal permissividade é pura disrupção da moral repressiva, sendo ela própria a responsável pelas tensões existentes. E assim por diante.

No final das contas, estão em jogo os próprios ideais de sociabilidade, os quais as partes em conflito acreditam defender em nome da felicidade geral da nação. Essa classe de certezas não é benigna ou violável e, sem que seja calibrada, leva a uma situação sem solução.

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