Difícil falar dos quadrinhos brasileiros a partir da década de 1980 e não citar Angeli —ou melhor, toda a trupe de personagens que o consagraram como um dos cartunistas mais reconhecidos no país. O autor de 65 anos recebeu recentemente o diagnóstico de afasia, um distúrbio de linguagem causado por um dano cerebral que afeta a capacidade comunicativa das pessoas, e por isso anunciou que vai se afastar dos quadrinhos.
De Bob Cuspe, o punk verde, anarquista e porcalhão, passando pelos inconvenientes Skrotinhos, até o bronco Bibelô, Angeli buscou manter os personagens na rédea curta, expressando aquilo que o incomodava, mas também as transformações sociais que percebia.
Alguns, porém, extrapolaram o papel e fizeram um sucesso que incomodou o próprio autor —caso da icônica Rê Bordosa, que protagonizou histórias por cerca de quatro anos antes de ser morta em uma história publicada em 1987. Na Ilustrada de 21 de dezembro de 1987, a morte foi anunciada, antecipando a "edição de luto" da revista Chiclete com Banana, onde é narrado como o vírus "tédius matrimônius" fez com que a junkie explodisse.
Mesmo fora de circulação, permaneceu como uma das personagens mais conhecidas da sua prole. Em 2008, o caso rendeu o curta animado "Dossiê Rê Bordosa", com direção de Cesar Cabral, que depois faria o longa "Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente", lançado em 2021 —ele até entrou para a corrida do Oscar, mas não chegou entre os finalistas.
Os hippies Wood & Stock também protagonizaram o longa "Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll", dirigido por Otto Guerra e lançado em 2006. Mais recentemente, também apareceram nos episódios da série animada "Angeli, the Killer", de 2017.
Ainda nos anos 2000, seus personagens mais famosos também protagonizaram os "Angelitos", curtas animados exibidos no programa Metrópolis da TV Cultura. Foram eles que puxaram a republicação do cartunista pela Quadrinhos na Cia., com as coletâneas "Toda Rê Bordosa", "Todo Bob Cuspe" e "Todo Wood & Stock".
Veja a seguir uma lista das principais figuras que marcaram a carreira de Angeli.
Rê Bordosa
Com cabelos vermelhos espetados e óculos escuros, Rê Bordosa passou grande parte das suas histórias ou no bar, bebendo litros de vodca, ou na banheira, fumando com os seios boiando. A personagem surgiu como uma representação de uma nova mulher emancipada que aparecia nos centros urbanos na década de 1980. Essa liberdade aqui se confunde com a boemia, o alcoolismo e as dúvidas existenciais.
Um sucesso tremendo, Rê Bordosa começou a incomodar o próprio Angeli —que nem a considerava sua melhor personagem. Com medo de se repetir à exaustão, com "medo de fazer uma Mônica [a personagem de Mauricio de Sousa] drogada" —como contou em uma entrevista para o Itaú Cultural—, decidiu matá-la. Mas com certo cuidado.
No seu melancólio fim, a boêmia acaba se casando com o fiel barman Juvenal —inspirado no verdadeiro Juvenal Martins, o rabugento garçom do bar Rivera, no centro de São Paulo. Mas, em vez de cirrose ou Aids, Rê Bordosa acaba sendo vítima do casamento entediante. Vai se encostando no sofá, engordando, assistindo TV e morre assim que Juvenal propõe que tenham um filho.
Na época, o cartunista explicou: "As pessoas estão se casando pra fugir da vida mundana, e vão engordando e ficando cada vez mais feias", disse. "Eu não tenho nada contra o casamento, eu mesmo sou casado e tenho dois filhos, mas o que eu não suporto é essa onda moralista, como se o casamento fosse a grande solução pra tudo."
Bob Cuspe
O mais célebre dos personagens alternativos de Angeli, Bob Cuspe surgiu da onda punk. Submundano por excelência, como antecipa seu nome, ele escarrava a torto e a direito, descia literalmente pelo cano, se transportava entre privadas, preferia urinar na pia que no mictório et cetera.
Assim como a maioria dos personagens do cartunista, Bob Cuspe veio de uma vontade de zoar os punks, mas afinal Angeli percebeu que tinha muito a ver com essa tribo, e a figura acabou se tornando uma espécie de alter ego seu, servindo de veículo para extravasar sua veia anarquista e criticar o crescimento da elite financeira dos yuppies.
Os Skrotinhos
Nascidos após a morte de Rê Bordosa, em 1987, a dupla de gêmeos surgiu como uma sátira dos clássicos "Sobrinhos do Capitão", de Rudolph Dirks. No lugar de dois peraltas em grandes confusões, aqui temos dois sujeitos inconvenientes, dispostos a fazer piada de tudo —ainda que seja de mau gosto.
A partir deles, Angeli também imaginou derivações como as Skrotinhas (a versão feminina da dupla, mais depravada) e os The Little Black Skrot —uma versão negra dos Skrotinhos, que partia do rap para tirar sarro dos brancos.
Wood & Stock
Não é preciso ir além do nome e do visual da dupla de personagens para entender de onde saiu a inspiração para esse par de hippies nostálgicos e sempre chapados. "O Wood e Stock nasceram dessa observação, ali pela década de 1980. São personagens que falam do sexo livre, drogas e rock n’roll. A trinca", explicou o autor, em entrevista para este jornal em 2020.
Com uma dinâmica que lembra as piadas de "O Gordo e o Magro" —apesar de os dois serem barrigudos—, as tirinhas brincam com o estereótipo dos bichos-grilos movidos a maconha, psicodelia e muito amor a uma época que, para eles, não passou.
Bibelô
O típico macho conquistador, Bibelô surgiu na Chiclete com Banana com o epíteto de o último dos broncos. Grosso e machista, o personagem conhecido pelo apelido rodrigueano —há um personagem da peça "Os Sete Gatinhos" com esse mesmo nome. Ele ostenta um fio de bigode, costeletas, óculos escuros e faz o tipo pegador, mas já ultrapassado e decadente.
Mara Tara
Outra célebre personagem underground de Angeli é a ninfomaníaca Mara Tara. Armada de espartilho e chicote, ela sai de lingerie chupando homens até a morte. Também fruto de uma época marcada pelo rock, a mulher na verdade é uma cientista que sofre um acidente durante uma pesquisa com bactérias (que se reproduzem sexualmente) e acaba se tornando essa vilã digna das músicas de Fausto Fawcett.
Luke & Tantra
Caricatura de adolescentes paulistanas de classe média, essa dupla de garotas desajustadas representa uma geração que começou a interagir com a internet, mas não sabe bem o que quer, e acaba experimentando o que vê pela frente. Elas também são um contraponto ao menino Ozzy, um adolescente rebelde, filho da geração Nirvana que não sai da asa dos pais.
Meiaoito e Nanico
Essa dupla icônica mistura um revolucionário de esquerda que não sai do botequim —o Meiaoito, batizado em referência à efervescência de 1968— e Nanico, um homossexual que não cansa de dar em cima de todo homem que vê. Inseparáveis como Quixote e Sancho Pança, são desenhados de forma parecida, narigudos, de sobretudo e boina, mas com alturas diferentes.
Assim como Rê Bordosa, Meiaoito também foi morto nas HQs, na tirinha publicada em 20 de julho de 2007. Nesse caso, não foi pelo sucesso grandioso, mas porque o autor considerou que seu repertório ideológico estava datado. O esquerdista acabou atropelado por um caminhão de Coca-Cola. Aos poucos, Nanico também passou a sumir das tirinhas, talvez pelo tom de suas piadas, que hoje poderiam ser vistas como preconceituosas.
Rhalah Rikota
Uma gozação com os gurus de plantão, Rhalah Rikota é um pilantra espiritual que faz tudo para se aproveitar da inocência de suas discípulas. O próprio Angeli afirmou que o personagem teve uma notória influência, "quase plágio" do Mister Natural, do quadrinista Robert Crumb.
"A origem está no amigo Glauco, que na época [1984] levava fé em um tal indiano, Rajneesh", lembrou Angeli à época da morte do amigo, criador do Geraldão e com quem desenhou Los Três Amigos, ao lado de Laerte.
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