Ana Paula Vescovi

Economista-chefe do Santander Brasil

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Ana Paula Vescovi
Descrição de chapéu Banco Central

Seriam deuses os Bancos Centrais?

Pouco se conhece sobre os efeitos de longo prazo dos instrumentos usados pelas instituições desde a crise de 2008

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Quais seriam os efeitos de longo prazo das medidas (já não mais tão extraordinárias) adotadas pelos bancos centrais (BCs), desde a crise financeira global de 2008, para estabilizar os mercados e aumentar o crescimento?

O conjunto de respostas foi utilizado em ainda maior escala durante a pandemia e pode ter aberto um precedente perigoso: quanto mais os BCs fazem, mais se espera que façam e mais estes acabam por fazer.

Será que o uso desses novos instrumentos verdadeiramente ajudou os BCs a alcançarem seus objetivos de inflação, desemprego e estabilidade financeira ou apenas trouxe novas demandas a eles?

A ilustração do Amarildo, publicada na Folha de São Paulo em 3 de março de 2024, no formato horizontal, mostra um falcão preso em uma gaiola, no lado esquerdo, ocupando um terço da ilustração. O falcão tem uma cor marrom-alaranjado forte e está com uma sombra local bem escura. Do lado direito, temos uma pomba voando. A pomba ocupa um terço da altura da ilustração e tem menos da metade do tamanho do falcão. Atrás do falcão e da pomba, temos uma linha gráfica 3D, irregular, com altos e baixos. Ela tem duas pontas: a da esquerda superior, para cima, e a ponta do lado direito inferior, apontando para baixo. A cor da linha é de um laranja vivo. O fundo da ilustração é de um degradê azul-esverdeado, começando forte na parte superior e terminando na cor branca, na parte inferior.
Ilustração de Amarildo - Amarildo/Folhapress

Essa é a questão central do instigante livro "Os Efeitos Não Intencionais da Política Monetária" (Raghuran Rajan, 2023), célebre pesquisador da Universidade de Chicago e ex-presidente do banco central da Índia (2013-2016).

No mundo todo, os BCs têm enfrentado pressões típicas de economia política. Tratar da política monetária sob essa perspectiva não é algo novo: há ampla literatura focada nos impactos das pressões políticas sobre as decisões de política monetária. É fato, porém, que o tema havia saído do enfoque por um período prolongado.

Após o período em que o Federal Reserve (Fed, o BC dos EUA) esteve sob o comando de Paul Volcker, entre 1979 e 1987, o combate à inflação foi incrivelmente bem-sucedido, tanto que as métricas inflacionárias mais relevantes tiveram médias inferiores às suas metas no mundo desenvolvido. Porém, seria exagero atribuir tal conquista unicamente à política monetária no período, sem reconhecer que parte desse sucesso pode ter sido explicada por algumas forças de oferta e demanda concomitantes.

Depois da "era Volcker", o mundo experimentou uma onda de políticas liberalizantes nos mercados, assim como viu a entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), no início nos anos 2000, e a aceleração da globalização. Para influenciar os países em desenvolvimento, ainda houve o Consenso de Washington* e as reformas estruturais pró-estabilização monetária. Tais eventos contribuíram para ampliar a eficiência na economia real, com tendência de queda nos preços, especialmente de bens industrializados.

O cenário mais recente mudou essa figura drasticamente e trouxe fatores que dificultam a missão do controle inflacionário: disputas protecionistas, padrões mais elevados de oferta de trabalho, mudanças na percepção de eventos improváveis (tais como a pandemia de Covid-19) e pressões políticas para maior ativismo fiscal, com aumento de transferências para o setor privado. Parece que estamos assistindo à volta dos tempos da influência da economia política sobre a política monetária.

Sede do Fed (Federal Reserve, o BC dos EUA)
Sede do Fed (Federal Reserve, o BC dos EUA) - Joshua Roberts/Reuters

Alguma percepção de aversão mais reduzida à inflação vem dificultando politicamente decisões preventivas para o seu combate, ante uma política fiscal mais relaxada. Discursos mais duros e avessos a pressões inflacionárias para justificar a elevação da taxa de juros se tornaram frágeis.

A antecipação de uma política monetária mais relaxada com taxas de juros reduzidas por períodos prolongados (conhecida também como forward guidance) resultou em um mercado mais dependente, com crenças implícitas de que as autoridades monetárias seriam reativas a quedas nos preços de ativos.

Não é novidade que os BCs do mundo desenvolvido carregam em seus balanços parcela significativa da dívida soberana de seus respectivos países e ativos privados em grande volume. Esse fato trouxe ainda a dificuldade de que, em ocasiões de elevação das taxas de juros, há perda de valor dos títulos públicos, o que implica prejuízos para o próprio governo, por meio dos resultados dos BCs. Ademais, o encurtamento do prazo das dívidas públicas, combinado à sua dimensão crescente, intensifica as pressões políticas sobre os bancos centrais em momentos de maior austeridade.

Por fim, a dependência dos mercados financeiros à liquidez provida pelos BCs também limita sua capacidade de reduzir os seus balanços —isso poderia ser feito por meio da venda de títulos públicos e privados, ou simplesmente ao deixar de recomprá-los nos vencimentos. Desde 2008 não se consegue voltar aos patamares anteriores de ativos carregados nos balanços.

Do nosso ponto de observação, é difícil afirmar que eventos globalmente impactantes serão menos recorrentes ou que estejamos passando apenas por uma transição para aquilo que seria um novo status quo global.

O mundo parece necessitar de narrativas mais realistas, que reconheçam os limites associados à política monetária e à estabilidade financeira, sem abrir mão do combate à inflação. Diante da incerteza, a melhor prescrição seria insistir em uma atuação mais cautelosa.

Amanhecemos no dia 21 passado com a triste notícia da morte do professor Affonso Celso Pastore.

Era destacável sua mente afiada, sua gentileza em dividir o amplo conhecimento, sua expressão severa quando se preocupava com os rumos do Brasil, e até a recente curiosidade por imagens e rotas dos telescópios espaciais.

Seu legado é um marco na economia brasileira e ele já recebeu muitas merecidas homenagens em vida. Mas, sem dúvida, nos deixa uma imensa lacuna.

*O Consenso de Washington foi um conjunto de medidas econômicas concebidas no final da década de 1980 por organismos multilaterais e destinadas aos países emergentes da América Latina, então superendividados e com inflação fora de controle. Essas medidas tinham como objetivo estabilizar essas economias por meio da disciplina fiscal, do reordenamento dos gastos públicos e da maior abertura econômica.

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