Anderson França

É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.

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Anderson França

Posso ter fugido da morte no Rio para morrer na Europa

Não é só o Brasil, a Europa ou o mundo que está em convulsão, mas a história

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E pensar que posso ter fugido de morrer no Rio pra morrer na Europa.

Gosto de rir da ideia. Afinal, se for isso mesmo, quero morrer rindo de mim mesmo. A gente morre, né. De alguma coisa, a gente vai morrer.

Fiquei olhando pela janela na manhã de hoje uma Lisboa vazia. Espanha, com quase 300 novos casos hoje, segunda (16). A União Europeia determinou o fechamento das fronteiras do continente por 30 dias, algo que não se via talvez desde a Segunda Grande Guerra.

Nós estamos vendo a história em convulsão. Se eu fosse reeditar meu livro, seria isso, “História em Shamas”, e não mais Rio. Nem seria Brasil, ou Europa, ou mundo. História mesmo. Porque não são apenas fatos geográficos, biológicos, econômicos e políticos. São todos esses, e a cabeça das pessoas que estão em chamas. Pessoas realmente acreditando que a Terra é plana. Pessoas realmente acreditando que fazer manifestação contra o “vírus da corrupção’, presidente da República descendo a rampa do Planalto pra apertar a mão de todo mundo, se agarrar, se lambuzar, como fez no último domingo (15), quando a Europa decreta fechamento de todas as fronteiras por 30 dias, a Argentina e o Paraguai também fecham (sabiamente pensando que o vírus pode vir pelo Brasil), ou seja, NÓS É QUE ESTAMOS SENDO ISOLADOS do resto da América Latina.

Jornalistas com anos de profissão chorando em frente as câmeras. Guga Chacra, Ilze Scamparini. Fora os que conseguem se segurar. Fora eu, você.

O nosso choro já nem é só pelos mortos do Covid-19. É por tudo. A desesperança, o desânimo, as coisas que acontecem todos os dias, que nos fazem pensar que o mundo já deve ter acabado e não nos avisaram. Veja, não é apenas o vírus o problema. ANTES, já tínhamos uma crise econômica e política, um presidente que se dirige a uma jornalista dizendo de maneira grotesca que ela queria “dar o furo”, ministros de Estado destruindo conquistas populares, praticando ofensas pessoais diretas a pessoas que dedicam suas vidas para solidariedade coletiva, caso do Drauzio, gravemente ofendido pelo ministro da Educação.

Que tempos de violência são esses?

Um país dividido, polarizado. Nunca poderemos ser como os portugueses, que aplaudiram no último sábado (14) os paramédicos, profissionais da saúde que estão arriscando suas vidas num momento crítico? Eu tenho dificuldade, confesso, de aplaudir qualquer funcionário público no Brasil. Qualquer um, mesmo os que merecem, e acreditem, temos muitos. Mas são tantos anos de desprezo e descaso do Estado, que no fim, eu penso que eles não fizeram mais que a obrigação. E eu não deveria ser assim.

Ontem, fiz uma live com pessoas do mundo todo sobre como eles estão enfrentando o isolamento. Aqui, em Lisboa, já é real. Não podemos ir às ruas se não for para comprar comida, remédios e máscaras.

Escolas fechadas, supermercados com horários controlados. Mesmo assim, há empresas que obrigam empregados e funcionários a trabalharem, caso de vendedoras de cosméticos, perfumes e acessórios no Centro Comercial Colombo, que protestaram com cartazes onde se lia “não queremos estar aqui”, no melhor estilo “help me” que uma costureira chinesa escravizada mandou numa peça de roupa de marca, anos atrás.

E empregadas que estão sendo liberadas não estão recebendo por isso. Os empresários estão “descontando” das horas extras que elas fizeram pra usar dentro de sua liberdade, ou pior, vários empresários estão simplesmente liberando empregados para depois, quando voltarem ao trabalho, “pagarem” os dias que ficaram em casa, ou seja, trabalharão sem receber os dias que PRECISARAM, por força de lei, ficar em casa, para então, sabe-se lá quando, poderem receber normalmente os dias de trabalho.

Não é só isso. Empregadores obrigam pessoas a assinarem licenças não-remuneradas ou mesmo a pedirem demissão. E eu sei disso, porque muitos desses empregados e empregadas são brasileiros e imigrantes. Gente altamente qualificada, mas que não se emprega em suas áreas numa Europa xenófoba.

Mães que estão com as crianças em casa. Escolas fechadas, mães presas. E quando as famílias dependem da alimentação dada na escola, o cenário piora. É uma reação em cadeia. A escola libera crianças, as mães precisam faltar o trabalho, o salário fica comprometido, o consumo das famílias cai, a economia freia, a crise econômica cresce, o desemprego, o caos, sem hora pra acabar. Porque não sabemos, não há uma data segura, não há um dia em que possamos dizer: neste dia tal, acabou. Podemos voltar pras ruas.

Não está sendo assim na Espanha, Itália, Alemanha, França, Suíça e em breve no Ocidente inteiro. Merkel decretando quarentena e fechamento de fronteiras, Macron decretando o mesmo, imagine uma Europa que é uma cidade-fantasma.

Enquanto isso, o Bolsonaro volta da Casa Branca com 12 infectados, mente sobre sua condição pra Fox News, condena a mídia pelas mentiras do próprio filho, convoca manifestação que pede fechamento de Congresso, desmente, diz pra ninguém ir numa mão, e com outra, dispara mensagens pro povo ir. Ele mesmo então vai, e minimiza a situação. Fazendo com que você, que me lê, continue sem acreditar no que vai acontecer.

A gente não acredita no vírus porque via de regra somos muito vira-latas. Terrorista e vírus não se criam num lugar onde a PM (Polícia Militar) mata todo dia. Mas e se esse barco virar? Já parou pra pensar que as periferias vão sofrer mais? Porque não há leitos nos hospitais públicos pra todo mundo. O que vamos enfrentar no Brasil é diferente da China, da Itália, de o escambau, porque na China e na Europa não tem favela como aqui no Brasil. Só no Rio são 1.024 favelas. Esse vírus é um só, e em cada país ele pega o ponto fraco local.

Na Itália e na Europa, ele ataca a população adulta e mais velha. E Europa é uma vila. Pequena, suja, antiga. Lugar ideal pra ter umas pestes. A visão que temos da Europa é muito equivocada. Isso aqui é uma fragilidade só, amigo. Eu moro num prédio que dia sim, dia não, o esgoto sobe pelo cano, e não dá pra ter uma cafeteira e um forno ligado que a luz cai. Uma vergonha, tudo antigo.

Mas lembre-se: foi uma pessoa que levou, da Itália, o vírus pra São Paulo. E se o vírus que foi pra São Paulo se espalhar a ponto de fazer o que aconteceu em Milão, amigo, se prepara.

Irresponsável o posicionamento do Olivier Anquier, chef gente boa, gosto dele pra caramba, tenho maior tesão em francês. Acho que todo francês é brasileiro. Mas achei irresponsável um post dele dizendo, em resumo: “eu me recuso a ficar em casa, vou pra rua, são só 200 casos num país de 200 milhões”. Então, Olivier, é verdade. Mas é verdade assim, na teoria.

Na prática, são 200 casos, a maior parte em São Paulo e Rio, cidades onde você mora e trabalha. Não existem “200 milhões de pessoas”, existe o Méier, Santa Cecília. E o problema é aí. Na festa da Pugliesi. Todo mundo achando que essa doença ia rolar no Baile da Nova Holanda, pimba. Foi na festa dos pleiba.

As lora, os loro, tudo com pulseira da UPA (Unidade de Pronto Atendimento).

Marco Feliciano e Edir Macedo dizendo que esse vírus é uma palhaçada, um exagero, uma fita de Satanás e da mídia. Enquanto isso, o reverendo Ed René Kivitz, da Igreja Batista no bairro de Água Branca, São Paulo, fez um culto diante de uma igreja vazia, com 3.000 lugares vazios, e transmitiu pela internet. Culto com oração, músicos e sermão, porque, segundo ele: “fé nos chama para a responsabilidade”. Para com o outro, para com nós mesmos.

Nós estamos pensando que o Covid-19 é um vento que vai passar, pra depois a gente continuar a porradaria política. Na verdade, essa crise pode ser uma curva na esquina que nós não prevíamos. A história é assim. Por isso os jornalistas choram. Porque chegamos a um limite da nossa barbárie.
Esse momento vai testar em muitos de nós a nossa humanidade.

E se não restou nenhuma?

Se aqueles que celebram a morte de Marielle, de Bebianno, de crianças negras com tiros nas costas na favela da Maré, já não se importam nem com a própria vida, a ponto de irem pra passeata, expondo-se à morte, que humanidade podemos esperar nos próximos meses?

Crianças no Brasil que comem a merenda dada na escola. Mães que trabalham e precisam largar o emprego pra cuidar dos filhos. Patrões que obrigam as domésticas a ficarem no serviço, adoecendo com eles.

O que restará depois de 2020?

Temos que jogar a pergunta lá na frente.

Porque precisamos amadurecer como povo. Como raça humana.

Eu acho que a taça das nossas maldades chegou ao limite.

E precisamos, nessa hora, ter calma e refletir. Este mundo não é nosso.

O poder é uma ilusão. A vida é um sopro. E o corpo é frágil.

Onde estão nossos amores? Nossos afetos? O que, de fato, tem valor agora?

No fim, vamos todos morrer. A questão é: como.

Em paz, ou surtados uns com os outros?

Eu mesmo corro risco aqui. Escrevo hoje sentado no chão do banheiro de casa. Lugar onde pus uma música e pude me desligar do mundo.

Posso ter saído do Rio pra morrer aqui. E, acredite, eu estou falando sério. Posso rir disso dentro do caixão, mas é sério.

Mesmo no Rio, quando cobri violência policial, não houve um único dia em que 348 pessoas morressem de bala perdida, ou de qualquer coisa, num único lugar, num único dia. E isso aconteceu na Itália, ontem. E lá, onde os marcos civilizatórios ainda são mantidos, isso foi um massacre que remeteu a Segunda Guerra.

Procure ajudar pessoas.

Procure um jeito de passar por este momento da história sentindo que, se chegar a hora, você vai. Em paz.

E se sobreviver, e se não for nada tão dramático pra você, saiba, este que vos escreve tá vendo uma parada que nunca imaginou ver. E eu já vi muita merda na vida. Mas nunca imaginei que seria proibido de sair da minha casa. E gente morrendo a rodo, logo ali.

Daqui, deste lado do mundo, eu peço: se cuide. Cuide dos seus.

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