André Roncaglia

Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

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André Roncaglia
Descrição de chapéu yanomami desmatamento

Arrabalde yanomami

Fiscalização ostensiva das reservas indígenas deve ser combinada ao planejamento de uma bioeconomia de vanguarda.

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Numa das cenas mais constrangedoras da diplomacia, em meio ao Fórum Econômico Mundial de 2019, um deslocado Bolsonaro revelou a um Al Gore atônito o desejo de que Brasil e EUA explorassem a Amazônia juntos. A declaração de desejo neoextrativista prenunciava o caos planejado que recairia sobre o nosso mais opulento bioma.

Em seu livro "Arrabalde: em busca da Amazônia", João Moreira Salles enuncia que, desde a chegada dos europeus, o mal comum que se abateu sobre o bioma foi a indiferença dos forasteiros com relação à floresta, há séculos objetificada como rico manancial de recursos extrativos. De todo o planeta, a Amazônia hospeda 20% da água doce, 25% da biodiversidade e 10% das formas vivas conhecidas.

Mas a floresta é mais do que isso. Um "sistema surgido da colaboração entre humanos e não humanos", o bioma é também "uma construção humana, um artefato de cultura". Por milênios, a floresta vem sendo manipulada por mãos indígenas que, a partir de um profundo conhecimento das interações da fauna, flora e clima, selecionam plantas e constroem solos férteis.

Pessoas fazem fila para receber comida que está sendo distribuída em um helicóptero pousado na grama
Pessoas em comunidade yanomami fazem fila para receber cestas básicas distribuídas por militares do Exército e da Força Aérea Brasileira - Comando Militar da Amazônia - 24.jan.23/Divulgação

A floresta é um notável manancial de inteligência ecológica. É uma biblioteca natural. Como sobre coisas importantes pairam sempre terríveis ameaças de destruição, cumpre protegê-la de ameaças predatórias.

Salles aponta que, em 2020, "intensificavam-se as violências de toda a sorte" sobre o bioma. "Suas árvores ardiam, suas terras públicas eram ocupadas por ladrões, seus rios vinham sendo sistematicamente envenenados pelo mercúrio do garimpo, invadiam-se unidades de conservação e os territórios indígenas". Registra o "quadro de descontrole no qual a criminalidade se espalhava por toda a parte" tinha um culpado: "um Estado que decidira abdicar de seu dever para com a região".

Por isso, o inquérito para investigar a prática de crime de genocídio contra o povo yanomami deve apurar a omissão planejada por parte do governo Bolsonaro, a qual desarticulou o meio de vida dos yanomami, sujeitando aquela população a riscos e doenças preveníveis.

O artigo "Epidemiology, Biodiversity, and Technological Trajectories in the Brazilian Amazon: From Malaria to Covid-19" (2021) mostra que o desmatamento, perda de biodiversidade e serviços ecossistêmicos na Amazônia promovem a disseminação de doenças tropicais, normalmente negligenciadas, como leishmaniose, dengue, doença de Chagas, dentre outras.

A sanha extrativista injetou mercúrio nos rios, interditou as roças e destruiu a dieta yanomami, enquanto a malária e outras doenças avançavam, a partir do contato com os garimpeiros invasores, que destruíram equipamentos públicos de atendimento aos povos indígenas. No caso do garimpo, a fiscalização tem sido insuficiente para impedir a regularização do ouro extraído ilegalmente de reservas indígenas e que alcançam o mercado internacional, reforçando os incentivos econômicos.

O Estado brasileiro precisa retomar a governança integral da região. A fiscalização ostensiva das reservas indígenas deve ser combinada ao planejamento de uma bioeconomia de vanguarda. A economia verde depende da rica diversidade de compostos bioquímicos e bioenergéticos amazônicos. Esta vasta biblioteca natural só pode ser acessada por meio de quem construiu o bioma em comunhão com a natureza, isto é, os povos indígenas. A floresta em pé tem valor não só econômico, mas também climático, sanitário, estético, democrático e moral. Proteger os povos originários e o ecossistema amazônico constitui imperativo democrático do processo civilizatório, promulgado pela Constituição Federal de 1988.

Que o projeto de genocídio dos yanomamis seja uma lição sobre os efeitos trágicos da omissão do Estado na proteção da Amazônia. Conheçamos a floresta. Os xamãs yanomamis podem descansar. A queda do céu está suspensa por prazo indeterminado.

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