Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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#gadjiberibimba

Só entendi o surrealismo quando já estávamos afundados nas trincheiras da Covid

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A primeira vez que ouvi falar em surrealismo foi na escola. A professora nos mostrou umas obras de arte no retroprojetor e passou uns poemas e manifestos pra gente ler. A apostila explicava: a queda dos piqueniques com champanhe do Manet pras trincheiras com gás mostarda da Primeira Guerra Mundial havia sido tão traumática que a lógica tinha se esgarçado. As palavras não davam conta de descrever o horror. Para retratar a realidade era preciso espatifar as lentes.

Não entendi. Quer dizer, entendi daquela forma protocolar e superficial como entendemos tantas coisas na escola. Da tabela periódica ao simbolismo, do π às figuras de linguagem. Depois, ao longo da vida, a gente apanha um pouco aqui, se apaixona acolá, lê uns livros, assiste a uns filmes, até ir se dando conta de que todo o conteúdo das apostilas tratava do nosso mundo, da nossa vida, das pessoas ao nosso redor. Machado de Assis é um gênio porque descreveu, 150 anos atrás, o seu cunhado.

Desenho de um rinoceronte
Adams Carvalho

Só fui entender de verdade o surrealismo no ano passado, quando já estávamos bem afundados nas trincheiras da Covid, envenenados pelo gás mostarda do bolsonarismo. Meu professor foi o dramaturgo
Eugène Ionesco. Minha apostila, a peça “O Rinoceronte”.

Do nada, numa cidade —spoiler— começam a aparecer rinocerontes. No começo o pessoal se choca. Depois, passa a ser um fato mais ou menos corriqueiro. Não demora para o protagonista descobrir que os bichos são, na verdade, os moradores da cidade. Por alguma razão misteriosa, amigos, parentes, vizinhos, todos vão virando rinocerontes, até que o personagem principal se sente coagido a também transformar-se num animal. Não vou contar o fim da história.

É uma peça que se lê com o estômago embrulhado, porque fala do Brasil de hoje: presidente rinoceronte, ministros rinocerontes, rinocerontes aglomerando sem máscara, rinocerontes matando crianças, rinocerontes lucrando e rinocerontes rindo disso tudo. Ionesco escreveu teatro do absurdo? De forma alguma. Foi apenas um realista obcecado descrevendo os regimes totalitários de sua época:
nazifascismo, comunismo.

Duzentos e sessenta mil mortos, subindo, acelerando e o rinoceronte em chefe pisoteando mais e mais. Eu e tantos outros na imprensa e nas redes estamos há mais de dois anos gritando: rinocerontes! Rinocerontes! Rinocerontes! Muito em breve chegaremos a 300 mil mortos. “Rinocerontes!”. Viu? Nada acontece.

Sinto que as palavras não dão conta de descrever o horror; o que dizer sobre freá-lo? Se para retratar a realidade é preciso espatifar as lentes, como há cem anos, tomo emprestados os cacos linguísticos criados pelo dadaísta Hugo Ball. O poeta alemão escreveu poemas inteiros só com palavras por ele inventadas, “para lembrar o mundo de que existem pessoas de espírito livre —para além da guerra e do nacionalismo— que vivem por diferentes valores”. Gente que, como eu e você, se recusa a virar rinoceronte.

Aqui vai a primeira estrofe de “gadji beri bimba”, de Hugo Ball: “gadji beri bimba glandridi laula lonni cadori/ gadjama gramma berida bimbala glandri galassassa laulitalomini/ gadji beri bin blassa glassala laula lonni cadorsu sassala bim/ gadjama tuffm i zimzalla binban gligla wowolimai bin beri ban/ o katalominai rhinozerossola hopsamen laulitalomini hoooo/ gadjama rhinozerossola hopsamen/
bluku terullala blaulala loooo/”

Brasil: “gadjama rhinozerossola hopsamen”! Bolsonaro: “bluku”! Salles: “terullala”! Pazuello: “blaulala”! Guedes: “loooo”!

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