A Vós, Jeová, eu nem precisaria confessar, pois em Vossa onisciência já o sabeis. Se o faço é na esperança vã de que minha contrição Vos comovais e Vos dissuadis de brincardes com este pobre pecador como brincastes com o virtuoso Jó: fui eu quem esqueci de pagar a conta, tá, fui eu o culpado pelo corte de energia.
Toda a tribulação, porém, que tenho passado nas últimas 72 horas (sem geladeira, tomando banho frio, dormindo de favor nos amigos, trabalhando em Fran’s Cafés e submergindo num labirinto de Franz Kafka), tudo isso só pode ser castigo Vosso.
Paguei a conta atrasada assim que a recebi, ó, Senhor. Solicitei a religação da energia, o que deveria acontecer em até 24 horas, segundo a voz gravada da Enel, que vem a ser a mesma voz gravada da Net, o que não vem ao caso. Porém, como meus pecados devem ter sido grandes, impelistes-me a comprar, meses atrás, uma campainha elétrica. Como ouvir a chegada da Enel?
Desde os gregos a tragédia humana resume-se a tentar lutar contra Vossos desígnios. Édipo o tentou fugindo de Corinto, assim que soube por Tirésias da terrível profecia. Eu tentei colando uma cartolina no portão: "Caro funcionário da Enel, a campainha não funciona sem energia. Favor tocar no vizinho, casa 233."
Pois passaram-se 24 horas, Senhor —e nada de fiat lux. Devem ter sido imperdoáveis meus pecados, Deus meu, pois Vós supliciastes esta pobre ovelha com o pior dos látegos: o labirinto telefônico-burocrático da Enel. Veja, senhor, humildemente reconheço, novamente, minha falha: eu não havia passado a conta do antigo morador para o meu nome. E só é possível obter qualquer informação da Enel sobre a instalação em posse do CPF e do RG do titular. E não é possível passar a conta para o meu nome com a luz cortada.
Senhor, ó, Senhor! Que bem tramais Vossos martírios! Justo no dia em que ligo para o proprietário, o simpático Ricardo, atrás dos dados do antigo inquilino, Vós o havíeis enviado para um congresso oftalmológico na Hungria. Senhor, ó, Senhor! Seria eu por acaso o último dos apóstatas, para que movais oftalmologistas de todos os continentes com o simples intuito de me fustigar?
A mãe do Ricardo, a afabilíssima Cida, vem em meu auxílio e liga pro antigo inquilino atrás dos documentos. Mas Vós, novamente, agis. O celular do antigo inquilino está desligado. Eu dou um google em seu nome. Eu descubro que ele é cabeleireiro. Eu ligo na Jacques e Janine. Eu peço pra falar com ele. Mas ele, ó, Senhor, ele, por ação Vossa, evidentemente, "deu uma saidinha". "Não, não sei quando ele vai voltar".
A Enel mais próxima fica na Freguesia do Ó. Quando lá chego —já sou o que de resto restaria aos urubus— me informam que a energia não foi restabelecida porque "não havia ninguém no local". Eu caio de joelhos, choro, rasgo as vestes, sujo a face. "Eu deixei um cartaz! Eu pedi pra tocarem no 233! Eles não viram?". A moça não sabe. A empresa é terceirizada. (Tudo, da queda do Muro de Berlim ao neoliberalismo, foi só para me torturar, Senhor?).
A moça diz que pediu novamente a religação. "Mas se eles não tocarem no 233 não tem como eu saber! A campainha é elétrica!". "Você não tem como deixar uma pessoa...". Ela mesma se censura, percebendo o absurdo da proposta.
Como mais absurdo do que deixar esta pessoa (que sou eu) 24 horas esperando na calçada é viver para sempre numa casa sem energia, serei fiel a Vossos desígnios, Javé. Enviando esta crônica, ponho, humildemente, a cadeira lá fora. A noite promete ser longa, fria e escura, mas em algum momento, espero, virá a luz.
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