Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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O futuro: adeus pertences

Será que estamos nos afastando do tempo em que o guru intelectual do governo flertava com o terraplanismo?

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A dez centímetros de mim o balcão, a uns trinta a cerveja, a uns dois metros a parede e daqui a uma semana sabe-se lá o que nos espera, Deus do céu, nem me fala. Acho que foi o Miguel Sokol, um dos maiores comediantes que já conheci, quem soltou esta pérola: "o futuro: adeus pertences". É um ditado bem brasileiro, de quem sabe que "pra baixo todo santo ajuda", temperado com a raiz forte dos antepassados judeus poloneses.

Os judeus poloneses se ferraram bastante. Woody Allen disse num stand-up algo mais ou menos assim: "Os católicos poloneses eram tão cruéis com os judeus na década de 1930 que quando Hitler invadiu a Polônia, vovó comentou com vovô: quem sabe agora as coisas não melhoram um bocadinho?".

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 25 de Setembro de 2022, mostra o desenho de um homem de costas sentado em uma cadeira com a cabeça em chamas.
Adams Carvalho

Sim, eu conheço a Lei de Godwin, segundo a qual toda discussão chega inevitavelmente ao nazismo e aquele que levantar o tema como argumento a perderá. Mas o próprio Godwin se pronunciou, ainda em 2018, liberando quem quisesse para chamar Bolsonaro de nazista.

A gente pensa no nascimento do nazismo e fica se perguntando: como foi possível? Como ninguém fez nada? Como não reagiram? Hoje a gente vê. É passo a passo. Um clube de tiro aqui. Uma estátua da liberdade lá. Uma bandeirola do Brasil num Graal. Uma mulher trans assassinada na Paraíba. Uma bandana num husky siberiano. Um corte na cultura. Um rodeio patrocinado acolá. Eles vão fazendo as queimadas pelas beiradas.

Será que estamos nos afastando do tempo em que o guru intelectual do governo flertava com o terraplanismo? Do tempo em que o presidente da república era o principal agente contra a república? Será que isso já é passado ou é o nosso futuro? Saberemos em uma semana.

A cerveja a trinta centímetros. O balcão a dez. Não repito o cenário por maneirismo. Me agarro a ele: o presente tá nebuloso demais pra deixarmos escapar qualquer corrimão. Se eu fosse capaz, voltaria a fumar às 24h de domingo, 25/09, e pararia às 24h do dia 03/10.

Meu filho me explicou outro dia que a viagem ao passado talvez fosse possível, porque o passado já existiu, mas o futuro, não. Depende do que a gente faz. Concordei e pensei que se houvesse um SAC cósmico, eu ligaria imediatamente: "Desculpa, amigo, mas não saber o que vai acontecer no futuro atrapalha muitíssimo nossas ações no presente. Não dá nem pra decidir se como um pudim ou corro na esteira numa segunda-feira, 09:37 da manhã em 14/11/2022, sem vocês me deixarem dar uma olhada na situação das minhas coronárias num sábado qualquer em 2038. É como dirigir sem para-brisa. Sem condição.".

O balcão à minha frente é de madeira. A cerveja é de cevada, levedura, água e lúpulo. A parede é de tijolos. O futuro é de qualquer coisa, ninguém sabe. Parece ensolarado, mas a previsão do tempo às vezes é traiçoeira. O futuro a Deus Pertence. Teve 4 x 0 da seleção brasileira na Espanha, na Copa das Confederações, depois teve 7 x 1 da Alemanha contra nós. Teve impeachment, vitória do Trump, derrota do Trump, Bolsonaro reinou, agora parece estar caindo. Pode ser que eu volte a esse balcão muitas vezes, escreva outras crônicas sobre ele, tomando essa cerveja, pode ser que eu suma, que eu fuja, que nunca mais veja nada disso, nem haja mais este jornal. Não dá pra viajar pro futuro.

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