Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata
Descrição de chapéu

A situação dos aeroportos

Em São Paulo o caos é aéreo, rodoviário e só não é hídrico porque nossos rios não são navegáveis

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Não sei se o pesadelo recorrente começou antes ou depois dos fatos narrados a seguir. O pesadelo: estou num palco, a plateia espera por minha fala e não faço a menor ideia de que fala seja essa. O sonho acaba sempre no auge da aflição, antes de me vaiarem, jogarem tomates ou, sei lá, me lincharem.

Agora os fatos. Era 23 de dezembro de 2011 ou 2012. Uma moça muito simpática me liga, diz que adora os meus textos e me convida a participar de um programa da Globonews ao vivo, onde falaríamos sobre o meu livro mais recente, lançado naquele mês. Poxa, aparecer na televisão pra divulgar meu livro? Como não topar?

Desligo o telefone com a simpática produtora e me liga uma outra, mais afobada (e, sinto, mais inteirada do programa): "Olha, o tema de hoje é racismo nos Estados Unidos, caos nos aeroportos e a devolução da Taça das Bolinhas do São Paulo para o Flamengo". "Desculpa, deve tá tendo algum engano. Eu sou cronista. Me ligaram agora pra falar do meu livro. Eu não sei patavinas sobre racismo nos EUA, caos nos aeroportos e essa taça das bolinhas aí". Um silêncio, ela se despede e desliga.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 11 de Dezembro de 2022, mostra o desenho de um pedalinho sobre linhas quadriculadas com letras do alfabeto na horizontal e vertical.
Adams Carvalho

Dois minutos depois, liga a primeira produtora: "Antonio, querido!!! Teve um problema de comunicação aqui! Claaaaro que você vem falar do seu livro! É que é um programa sobre vários assuntos, vão falar de racismo, caos aéreo, futebol, mas você fica à vontade pra opinar só sobre o que quiser, beleza?!".

Diz o clichê que na hora da morte toda a vida passa na nossa consciência. Não sei. Mas sei que um tufão existencial te perpassa na hora em que te perguntam, ao vivo, diante de todo o Brasil: "Antonio Prata, neste exato momento, em São Paulo, qual é a situação dos aeroportos?".

Eu tinha três saídas. 1) A chorona: "Pô, meu! Eu falei que não sabia nada disso! A produtora viajou! Eu vim falar do meu livro! Mó sacanagem!". 2) Mentir descaradamente: "a situação em Viracopos está 78% resolvida, porque o número de decolagens foi dividido entre quatro "clusters" nos "hubs" dos "brubles" das "TNKS" das principais companhias aéreas, de modo que a volatividade decolagem/aterrissagem tá 5 pra 2". E, finalmente, a opção 3) Zoar.

Foi aí que me veio a luz. Eu estava ali por escrever crônicas. Por trabalhar com humor. Não por supostos conhecimentos aeroviários, futebolísticos ou sociológicos. Em vez da ré, engato a quinta: "Olha, aqui em São Paulo o caos é aéreo, rodoviário e só não é hídrico porque nossos rios não são navegáveis, mas se fossem, aposto que seria mais rápido percorrer as marginais de pedalinho do que de carro. Eu acho. Alguém aí sabe a velocidade de um pedalinho?".

Silêncio mortal do apresentador. Eu tremo na minha cadeira. Rezo para que me esqueçam, mas cinco minutos depois: "Antonio, a devolução da taça das bolinhas do São Paulo pro Flamengo, que história é essa?". Não tenho a mais vaga ideia de que história é essa.

"Acho válido. Acho ótimo. Acho que o São Paulo tinha mais é que devolver todas as taças, mas não pro Flamengo e, sim, pro Corinthians". Risadinhas constrangidas do apresentador, que daí em diante não me perguntará mais nada. Fiquei ali, gelado no estúdio, pensando na roubada em que tinham me metido.

Desde então, mais ou menos por esta época, o sonho volta: eu, parado num palco, a plateia me encarando, esperando um texto que não tenho a menor ideia de qual seja. (Mas que, talvez, seja exatamente este aqui.)

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