Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Valeuzão, amigo!

Nas gentilezas falsas da nossa interação, aflora todo o desconforto social

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Três caras grandes caminham na minha direção. O maior deles segura uma barra de ferro. Se quiserem me matar, me enterram no barranco atrás do posto, no km 60 da Dutra, ali por Guaratinguetá, e ninguém jamais saberá do meu paradeiro. (Talvez encontrem o carro, algum dia, em Assunção, no Paraguai).

Essa foi só uma ideia que me veio à cabeça. Os três não tinham qualquer razão pra me assassinar –além das razões óbvias que sempre há, claro, para tirar a vida de alguém. Poderiam me matar para levar o carro. Poderiam me matar porque são pobres e eu sou rico num dos países mais desiguais do mundo. Poderiam me matar só pra se divertirem, como um gato faz com um rato. Felizmente, interditos sociais como "não matarás" estavam do meu lado.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 4 de dezembro de 2022, mostra o desenho de um nó em um prego de aço.
Adams Carvalho

O da barra de ferro era o borracheiro e estava vindo consertar meu pneu furado. Papeando com ele, quando eu cheguei, estavam dois caminhoneiros. Eu desci do carro, eles pararam de falar e mudaram de postura. (Em algum lugar, Étiénne de La Boétie e Foucault sorriram –dois caras que se dedicaram a responder à pergunta: por que é que uns mandam e outros obedecem?).

O borracheiro achou o furo: "Prego assim não tem jeito". "Outro dia entrou uma broca de furadeira no meu pneu. Quem é que joga uma broca na estrada?", soltou um dos caminhoneiros. Eu fiz qualquer comentário banal, que foi recebido com a reverência que só uma sociedade estamental sabe proporcionar. Seguimos em silêncio.

Além da sociedade estamental brasileira, que diz a cada casta como se comportar diante das demais, havia entre nós outra instituição: a cumplicidade hétero cis. (Quem disse que as instituições não estão funcionando?!) Impossível não pensar: e se eu fosse mulher? E se eu fosse gay?

E se eu fosse gay e tivesse um adesivo do Lula no meu carro e eles estivessem num bloqueio pró-golpe? E se eles achassem um adesivo do Haddad no banco de trás, ali? Estávamos só os quatro na borracharia. Uns quinze caminhões nos separavam do posto.

O contrário também é verdadeiro. E se o borracheiro estivesse voltando de madrugada pra casa e cruzasse com aquele pessoal encarregado de proteger a turma dos SUVs da turma da borracharia, também conhecido como Polícia Militar? E se ele cruzasse com a Rota, às quatro da manhã, segurando essa barra de ferro?

Certamente a minha existência representa para aqueles três um risco bem maior do que a deles para mim. Eles sabem disso. Nas gentilezas falsas da nossa interação, todo esse desconforto social aflora, como na breve interação no portão de casa com o motoboy do Ifood ou do Rappi. "Tenha uma ótima refeição, senhor". "Valeu, parceiro!".

O borracheiro termina de trocar o pneu e eu agradeço num paternalismo ridículo. "Valeuzão, aí, amigo!". (Pros meus verdadeiros amigos eu jamais digo "valeuzão"). Ele retribui num servilismo forçado. "Imagina, doutor!". (Eu não tenho nem superior completo).

Em caso de guerra civil estaríamos em lados opostos. Será que eles estão armados? São uns dos milhares de "CACs" que compraram pistola, fuzil e munição de 2018 pra cá? Será que nos reconheceríamos se déssemos com a cara uns dos outros em trincheiras opostas, lá por 2025?

"Opa, amigão, desculpa! Não vi que era você!". "Que isso, doutor, tranquilo! Desculpa qualquer coisa!". "Te avaliei e dei dez reais de gorjeta pelo aplicativo, tá legal?". "Deus te abençoe, senhor Antonio, vou estar te dando 5 estrelas também". "Amém". "Amém".

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