Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonio Prata

O papa papa glúten

Tratar o glúten a pontapés, como fizemos nas últimas décadas é cuspir no prato em que comemos por milênios

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Se não me engano, foi nos estertores dos anos oitenta que a medicina revelou o presente de grego escondido no PF do brasileiro. O exército inimigo, desta vez, não vinha dentro da cavalgadura, mas em cima: era o ovo no filé a cavalo – de Tróia. Os ovos mexidos do café, a omelete rapidinha pro jantar, a gemada fortificante da infância e da velhice, a gloriosa gema mole mergulhada pela casca do pão: venenos mortais. Como se as galinhas, de uma hora pra outra, tivessem parado de botar ovos para expelir granadas prontas a penetrar nossas correntes sanguíneas e explodir as coronárias.

Alguns anos depois vieram atrás da lactose. (Parecia haver uma ponta de sadismo na escolha dos cientistas, mandando ao Index Refeitorum Prohibitorum justamente as comidas aparentemente mais inocentes, aquelas que as nossas mães nos ofereciam ao raiar do dia). Cólicas, náusea, rinite, tosse, asma, diarreia, prisão de ventre; até hemorroidas puseram na conta do leite. Como, no entanto, nunca tive o leite muito em conta, dei pouca bola.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 09 de Abril de 2023, mostra o desenho de um grupo de pessoas utilizando remos e capacetes dentro de um pão francês sobre um prato, simulando estarem fazendo rafting
Adams Carvalho

Quando chegaram no glúten, contudo, encrespei. Eu sei que não é de hoje: faz décadas que atacam o pão, mas certos crimes não prescrevem. Principalmente aqueles que atentam contra a humanidade. E há alimento mais difundido pelos quatro cantos do mundo do que o pão?

O corpo de Cristo contém glúten. O matza (ou pão ázimo), que os judeus preparavam a cada chance de fuga do cativeiro Egípcio, também. A "última flor do Lácio" tem tanto glúten que nos leva a divagar: seria esta flor uma flor de trigo? "O pão nosso de cada dia". "Pão, pão, queijo, queijo". "Por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento". É verdade que "nem só de pão vive o homem", mas chego a pensar que é pior uma vida sem ele do que "passar a pão e água". (Desde que, claro, ao lado da água não esteja "o pão que o diabo amassou").

Ingratidão. Não tem outra palavra. Tratar o glúten a pontapés, como fizemos nas últimas décadas é cuspir no prato em que comemos por milênios. Em 2017, alguns bispos escreveram ao papa Francisco perguntando se era ok hóstias sem glúten. O Vaticano foi peremptório: não. (Acho que foi a primeira vez que concordei com uma opinião do Vaticano). Trigo geneticamente modificado, afirmou o papa, beleza. Mas a Eucaristia sem glúten, nem pensar. Seria como aceitar um Cristo sem coluna vertebral – ou talvez sem músculos, só pele e osso? (A última conjectura é minha, o senhor Bergoglio não tem nada a ver com isso).

Leitor celíaco, leitora celíaca, não é a vocês que me dirijo. Evidente que, por questões de saúde, os alérgicos ao glúten não podem consumi-lo. Mas segundo a Organização Mundial de Saúde, apenas 1% da população mundial sofre da doença. E segundo tenho notado, boa parte das pessoas que eu conheço tá cortando pão, macarrão, bolo e cerveja da dieta.

Na esteira da crise de 2008, os ativistas do movimento "Occupy Wall Street", acampados nas ruas e praças do setor financeiro de Nova York, cantavam: "We are the 99%!". Amantes do pão, do bolo, da cerveja e do macarrão: nós também somos os 99%! Entoemos, como eles, este canto. Façamos bonés "Make Glúten Great Again!". Exijamos pão para as massas -- e massas para as massas, também. Se não agirmos agora, mais dia, menos dia, vamos abrir os olhos e descobrir que sobraram apenas pão de chia, macarrão de quinoa e bolo de farelo de jaca desidratada. É este o mundo que você deseja deixar aos seus filhos? Eu não – e o papa Francisco tampouco.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.