Uma década depois da introdução da Lei de Cotas nas universidades federais e da expansão do ProUni e do FIES para permitir que alunos de baixa renda pudessem acessar o ensino superior privado por meio de bolsas ou empréstimos pagando só depois de formados, onde estamos no que diz respeito à inclusão dos grupos sub-representados nessa etapa de ensino?
A figura abaixo, retirada de estudo ainda inédito, ilustra o progresso recente no acesso ao ensino superior. Se até os anos 2000 praticamente nenhum homem ou mulher preto, pardo, indígena ou sem declaração de raça na faixa de 25 a 29 anos tinha diploma de ensino superior, nos últimos 20 anos vimos uma forte expansão do acesso entre esses grupos, chegando a 12.2% entre os homens não-brancos e 16.1% entre as mulheres não-brancas. Dito isto, a figura mostra que o acesso de homens e mulheres brancos, que já era muito maior nos anos 2000, aumentou pelo menos na mesma magnitude ao longo dos últimos 20 anos, preservando a lacuna racial no acesso ao ensino superior.
Analisando a evolução do acesso por Estado, e mesmo na população entre 18 e 21 anos (para a qual esses dados poderiam mudar mais rápido), a história é ainda mais dramática. No Rio de Janeiro, a porcentagem de mulheres não-brancas no ensino superior caiu 0.5 ponto percentual entre 2010 e 2019. Entre os homens não-brancos, a participação no ensino superior caiu em seis Estados ao longo desse período. No Pará, enquanto a porcentagem de homens não-brancos no ensino superior caiu quase 1 p.p., aquela de homens brancos aumentou quase 7 p.p.!
Apesar da Lei de Cotas ter levado à maior participação de não-brancos de escola pública nas universidades federais e nos cursos de maior retorno no mercado de trabalho, como apontam estudos recentes (Mello, 2022, "Affirmative Action, Centralized Admissions and Access of Low-income Students to Higher Education"; Barahona, Dobbin e Otero, 2022, "The Equilibrium Effects of Subsidized Student Loans"), a figura acima sugere que reservar vagas na universidade pública e financiar o ensino superior privado não foi suficiente para de fato diminuir disparidades raciais de acesso ao ensino superior como um todo. Ao mesmo tempo, estudo recente (Lichand, Perpétuo e Soares, 2023, "An Education Inequity Index") documentou que mesmo quando homens e mulheres não-brancos concluem o ensino superior, seu prêmio salarial é cerca de metade daquele de brancos com o mesmo diploma.
Desenhar a segunda geração dessas políticas exigirá entender quais as limitações de sua versão 1.0, e o que outros países que já passaram por esse momento estão fazendo de acertado. A evidência científica tem mostrado que não basta assegurar as portas de entrada para a universidade, é preciso também apoiar os alunos de grupos sub-representados na escolha do curso e da instituição, bem como apoiar sua jornada universitária – muitas vezes prejudicada pelo currículo invisível que não está acessível para quem é o primeiro da família a cursar ensino superior, incluindo a escolha de disciplinas, orientação de estágio, construção de redes de contatos profissionais até a construção de plano de carreira.
Outros países têm também sofisticado os filtros para desenhar essas políticas – que podem ter peculiaridades regionais. Mulheres não-brancas no Sudeste do país podem precisar de políticas diferentes do que homens não-brancos no Norte e Nordeste (e mesmo em diferentes Estados na mesma região).
O Brasil tem excelentes bases de dados administrativos conectando ensino superior a trajetórias futuras. Resta desenhar políticas informadas por esses dados para de fato apoiar oportunidades menos desiguais.
O editor Michael França pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida pelo quarteto foi "Cota não é esmola", de Bia Ferreira.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.