Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Isso sim é ridículo

Minhas pernas chacoalhavam como os braços de um boneco inflável de borracharia

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Numa pesquisa, perguntaram do que as pessoas tinham mais medo. Acredite se quiser: "morrer" ficou em segundo lugar. O que pode ser pior do que a morte? De acordo com os milhares de entrevistados: "falar em público".

Nesta semana, tive que apresentar um projeto diante de uns 30 executivos do audiovisual, no Rio de Janeiro. A agente de viagem me perguntou se era tudo bem para mim voar em avião pequeno. Se a leitora ou o leitor, porventura, algum dia, for confrontada(o) com essa questão, faça um favor a si própria(o), não deixe de perguntar "quão pequeno?". Fui pro Rio num teco-teco a hélice, monomotor, com nove lugares. É como voar numa Kombi. Por uma hora e 40. O serviço de bordo era um cooler no chiqueirinho. Juro. Temi pela vida, suei, mas não tremi.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 14 de Abril de 2024, mostra o desenho de uma pessoa sentada com as pernas esticadas em uma cadeira se equilibrando sobre outra cadeira.
Adams Carvalho

Já no palco, durante os sete minutos que tive para vender o projeto, minhas pernas chacoalhavam como os braços de um boneco inflável de borracharia. Só aí entendi a pesquisa. Morto não treme. Não gagueja. Não tem branco. Não borra as calças. Não comete atos falhos como o do mestrando que "queria dedicar a tese ao meu pau. Não! Ao meu pai. Não! Ao meu orientador". Resumindo, morto não passa ridículo —e, parece, o medo de quem fala em público é ser exposto ao ridículo. Já a morte, digamos assim, em tom filosófico, "a morte é a cessação do ridículo". Ou, numa pegada mais rodrigueana, "só o morto não é ridículo!".

Fico pensando: o que será que há de tão ridículo no ridículo? Tem um episódio na segunda temporada de "Curb Your Enthusiasm" em que o Larry David está saindo com a linda atriz Lucy Liu. Tudo vai às mil maravilhas até que ele dá com a testa numa vidraça e cai estatelado no chão. O relacionamento acaba. Ele não entende. Um amigo explica: nenhum desejo sobrevive a uma testada na vidraça. É curioso —meio triste, na verdade— que nas temporadas em que está casado, Larry é grosseiro, mal-educado, às vezes até malvado com todo mundo, mas isso não mexe com a libido da esposa. Aparentemente, pirata dá tesão, pateta, não.

O Nelson Rodrigues se meteu sorrateiro lá em cima, talvez, por ser um mestre em expor nosso ridículo. Em "Toda Nudez Será Castigada", Herculano, um viúvo dilacerado pela morte da mulher, jura ao filho, Serginho, ainda mais atarantado pelo luto, que jamais irá se relacionar com outra. Tempos depois, Serginho flagra Herculano passando talco nos pés. Herculano fica desesperado. "Meu filho me condena porque eu ponho talco nos pés! Como se fosse obsceno pôr talco nos pés!". Ao que a "Tia nº3" responde: "Nós achamos! Nós achamos!".

O silogismo do Serginho e das tias é perfeito. Quem põe talco nos pés quer evitar o chulé. O chulé só é sentido quando se tiram os sapatos. Logo, quem passa talco tá indo pra cama. Já a cena é perfeita porque revela o amor, o desejo, a suposta traição aos princípios pelo lado mais chinfrim: o medo de ter chulé. Um autor menos fino faria o filho flagrar o pai passando perfume. Bastaria pra levar a história adiante, mas não seria um comentário ferino sobre o patético da existência.

"Um comentário ferino sobre o patético da existência" é uma frase presunçosa, de nariz empinado, dessas que quer se impor não pelo que diz, mas na base da carteirada —o que só revela o medo que o autor tem de ser ridículo. Não o nego. No palco, tremia pelo temor de que enxergassem, por trás do meu discurso Boeing 747, o monomotor a hélice que o proferia. Isso sim é ridículo.

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