Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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Becky S. Korich

Mulheres 'do lar' também sofrem burnout

Em vez de descascar pepinos judiciais, me ocupo hoje de descascar batatas e resolver abacaxis domésticos

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Depois de 25 anos de advocacia, entre audiências, sentenças e recursos ordinários, tive a extraordinária ideia de tirar um ano sabático.

Não tinha nenhuma lógica: eu gostava do que fazia, estava em um bom momento profissional, em harmonia com meus companheiros de trabalho, tinha carinho pelas causas e até mesmo pelos clientes mais chatos. Mas, como eu nunca fui muito apegada à lógica das coisas, foi fácil me convencer de que era hora de dar uma parada antes que viesse o esgotamento.

Recorri a uma dose de irresponsabilidade e banquei a decisão. Tive que reunir coragem para buscar uma nova identidade que me representasse (somos a nossa profissão?), coragem para me organizar sem uma mesa de trabalho, sem horários, sem prazos, sem agenda e, principalmente, coragem para, ainda que provisoriamente, deixar de ser advogada para ser... nada, "nihil"!

Nuthawut/Stock Adobe

Aos poucos fui me libertando da saudade da rotina do escritório, do Código Civil, das justiças e das injustiças, e consegui, por fim, um habeas corpus para viver tranquilamente o meu ano de liberdade. Considerando que o sabático começa num sábado, eu estou na terça-feira, e eis-me aqui, mais exausta do que nunca à beira de um burnout doméstico.

Em vez de descascar pepinos judiciais, me ocupo hoje de descascar batatas e resolver abacaxis domésticos. A jornada de trabalho dobrou, tive que aprender a estar em vários lugares ao mesmo tempo e, sem o direito ao descanso semanal remunerado e sem hora para o cafezinho, os dias se tornaram uma coisa só, una e indivisível.

Aos poucos fui sofrendo esbulho da posse dos meus pertences, já que na qualidade de uma desocupada na vida, os invasores concluíram que eu não precisava mais de um espaço que fosse só meu. Meu computador, por exemplo, foi desapropriado sem nenhuma notificação prévia. Para conseguir a imissão na posse sou obrigada a apelar a balas e chicletes, praticamente uma corrupção ativa, até conseguir uma composição amigável que me garanta uma posse pacífica.

E tem mais. Se antes eu representava apenas uma das partes em um litígio, hoje acumulo a função de acusadora e defensora ao mesmo tempo nos conflitos entre os menores impúberes de casa. Quando vislumbro algum risco de lesão corporal, sou obrigada a assumir também o papel de juíza. Com base nas minhas próprias leis, que variam de acordo com o meu humor, imponho penalidades, sob a ameaça de uma pena restritiva de liberdade e, nos casos mais graves, um confisco do celular.

Não posso me queixar, é verdade, tenho garantidos os meus momentos de silêncio e tranquilidade, algo como cinco a dez minutos por dia, quando encontro a minha liberdade provisória. O fato é que não passo um dia sem sofrer alguma ação de cobrança ou outros processos reivindicatórios, pois sobrou para mim, a inútil que não faz nada na vida, resolver todos os problemas dos indivíduos que estão sob a minha guarda e tutela. O pior é que as demandas nunca terminam, são como aluguel: você mal paga um e já deve o próximo. E, se você não resolve na hora, tem que arcar com os ônus e outros acréscimos (nada) legais.

O curioso é que quando eu não era a reles desocupada que hoje sou e ficava ausente de casa o dia todo, metade dos problemas domésticos não existiam, as coisas se resolviam naturalmente num ambiente salubre. Cada um cuidava do seu. Ao passo que hoje, à minha revelia, me foi outorgada uma procuração sem prazo de validade para resolver demandas e necessidades alheias, que se reproduzem com uma rapidez impressionante. Tentei a nulidade dessa procuração compulsória, mas os outorgantes defendem que se trata de um ato irrevogável e irretratável. Preferi não recorrer dessa decisão, pois sei o quanto a justiça aqui é morosa.

Às vezes me dá uma enorme vontade de voltar à velha rotina, aquela tranquilidade toda de batalhas judiciais, prazos, audiências, sustentações orais, recursos. Mas é só falar dessa ideia em casa que sou acusada de abandono do lar e de tentativa de arruinar a união estável da família. Cogitei até em emancipar as crianças, mas não acredito que dê certo, pois se seguirem os passos do pai, data vênia, nunca vão passar dos 18 anos em termos de independência doméstica. Longe de mim caluniar, injuriar ou difamar os homens de casa, acontece que, se a gente não impuser desde cedo as normas regulamentares, fica prescrito qualquer direito de reclamação posterior.

Mantenho, em uma das paredes que me cercam —que já não são só quatro— um calendário igual ao que eu tinha para registrar a contagem regressiva para as férias escolares. Risco com um xis cada dia de vitória, mas já fui avisada que os meus serviços não remunerados se tornaram direito adquirido, uma nova modalidade de usucapião, só que de serviços.

Por isso, escrevo daqui, dentro de meu cárcere privado, para pedir mui encarecidamente a ajuda de um bom advogado que me liberte deste ano sabático e prove, por fim, a minha inocência.

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