Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

Os rupístreos ignoraram o extremismo do extremo e rumaram ao precipício

Seu fim resultou de um imenso retrocesso, no qual flertaram com o mal e o caos, justificando-os como salvação

Os rupístreos já não existem. Estão extintos. Seu fim começou quando passaram a associar palavras impróprias a coisas inadequadas, por oportunismo.

Os rupístreos brincaram com fogo, quiseram pagar para ver. Ao deixar de chamar as coisas pelo nome, ao confundir o nome das coisas, acabaram menosprezando o sentido admonitório das palavras.

Confundiram, por exemplo, palavras como “extremo” e “novo”, aplicando-as ao que não lhes correspondia. Preferiram ignorar o extremismo do que de fato era extremo e ver o novo onde não havia novidade nenhuma. E, em contrapartida, passaram a chamar de extremista quem até então se submetera às leis e às sanções das leis. 

Igualar opostos abriu caminho para a normalização do inadmissível. Aqueles que acusavam de extremista quem seguia as regras republicanas eram os mesmos interessados em sucatear a Justiça em benefício próprio.

Do mesmo modo, eram os que de costume apelavam para a ignorância e para a brutalidade, os pobres de espírito, os mais burros e os mais incompetentes, que defendiam com mais veemência o ideal de uma suposta meritocracia, contra medidas compensatórias aos injustiçados e desfavorecidos. 

covas seguidas
Cerimônia de enterro coletivo no Pará - Avener Prado/Folhapress

A falta de vergonha no uso indevido das palavras acabou por favorecer a burrice generalizada. É difícil pensar em meio a um emaranhado de imposturas e equívocos semânticos. Daí ao suicídio coletivo, bastava um empurrão.

Não se pode dizer que os rupístreos fossem inteiramente burros ou atrasados, mas eram guiados por aquele tipo de esperteza que os levava a avançar devagarinho para, no caso de meia-volta, debandada ou marcha a ré, encontrar-se sempre à frente. “Quem chega por último volta em primeiro!”, era o seu lema. O fim dos rupístreos resultou de um imenso retrocesso.

Numa inversão sinistra, flertaram com o mal e com o caos, justificando-os como salvação. Os nomes atribuídos às coisas erradas os desnortearam. No final, a justiça equivalia a “atender aos anseios da população”.

Como demagogia e hipocrisia são primas, justiça passou a ser sinônimo de pragmatismo e manipulação. E, sendo a burrice afilhada da manipulação, os rupístreos a mimaram com toda sorte de gracinhas e guloseimas, a ponto de até os manipuladores acabarem enfastiados. No final, já nem se preocupavam em disfarçar a manipulação. 

A miopia verbal, que se faz acompanhar da miopia pura e simples, pode até ser voluntária ou estratégica no início (podia ser que os rupístreos tivessem apenas fingido não reconhecer o que tinham diante do nariz quando o horror se anunciou) mas acaba deixando sérias sequelas para a visão de futuro. São os efeitos colaterais do excesso de oportunismo.

Os rupístreos perderam a capacidade de enxergar à distância. Não conseguiam, por exemplo, imaginar que uma aliança entre ideal econômico liberal e discurso político autoritário, aparentemente incompatíveis, estivesse na verdade fadada à natural prevalência da ideologia do mais forte e do mais violento, e de uma noção de economia imediatista, predatória e suicida a longo prazo. Mesmo sem imaginação, seguiam aferrados a fantasias infantis.

Rupístreas que viviam falando em paz e caridade eram entretanto incapazes de tomar o partido das vítimas assassinadas pelos capangas de seus maridos, de maneira que a paz que defendiam era ilustrada pelo sangue dos outros.

Em mais uma dessas inversões tão características da sociedade rupístrea, essas mulheres se submetiam orgulhosas aos desmandos de homens que as classificavam entre higiênicas e não higiênicas, dependendo do grau de obediência e submissão.

É claro que as palavras fora do lugar não surgiram do nada, por obra do Espírito Santo, como insistiam alguns rupístreos, autoproclamados mensageiros da palavra divina. 

Uma longa história de desfaçatez e injustiça abrira o caminho pelo qual os rupístreos seguiam cegos para o precipício. Foi preciso chegar à reta final para que uns poucos privilegiados, que só perto do fim pressentiram o gosto do inferno e começaram a gritar, entendessem que os demais, silenciosos, já o sentiam desde sempre, porque sempre viveram no inferno.

Tudo o mais que se sabia sobre a sociedade rupístrea pereceu com eles. A única relíquia que resta dessa civilização tão peculiar é a gravação feita por um antropólogo estrangeiro que os visitara anos atrás. Na gravação, um grupo enlevado de rupístreos, em confraternização, entoa um grito de guerra, à morte dos homossexuais.

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