Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Sem inimigos externos, Exército de reino da Índia se voltou contra a própria população

Projetando ataques de vizinhos, generais destruíram riquezas naturais antes que pudessem ser roubadas

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Durante a chamada Era de Ouro, a partir do século 8º, quando o califado abássida se estendeu da Sicília ao atual Uzbequistão, as rotas comerciais que ligavam a capital Bagdá à Índia e ao Extremo Oriente serviram também a narradores viajantes guiados pelo gosto do maravilhoso e do exótico.

O mesmo impulso que resultaria nas “Mil e Uma Noites” produziu narrativas de autores anônimos sobre reinos improváveis. A história de Jval Bhasma, na Índia, é uma das mais extraordinárias.

Na falta de guerras e inimigos externos, o Exército jvalbhasmense se voltou desde muito cedo contra a própria população. Só isso bastaria para garantir o aspecto fantástico do relato. A batalha fundadora de Jval Bhasma (que em sânscrito significa “brasas” ou “cinzas”, dependendo do momento e do ponto de vista) consistiu no confronto das tropas oficiais, fortemente armadas, contra súditos miseráveis, recolhidos a um canto recôndito do território. Como se tivessem tomado gosto pelo massacre, os vitoriosos nunca mais deixaram de ver no extermínio de desvalidos revoltosos a solução para a miséria.

Agricultores cobrem seus rostos em meio à fumaça na Índia
Agricultores cobrem seus rostos em meio à fumaça na Índia - Sajjad Hussain - 1.dez.20/AFP

Com a desculpa de defender as fronteiras, mas resistindo a assumir a responsabilidade por seus atos, as forças de Jval Bhasma converteram-se pouco a pouco no principal inimigo do país. Prenderam e torturaram; infiltraram-se nas instituições, desvirtuando funções e objetivos; recrutaram juízes, policiais e médicos; associaram-se ao racismo contra a maioria; aceitaram a corrupção sob o pretexto de combate à corrupção, o crime supostamente contra o crime e, durante as piores crises, puseram o soldo à frente dos interesses da nação.

Quando o reino foi atingido pela peste, aliaram-se a quem alardeava que tudo não passava de um complô. E quando já não era possível esconder os mortos, sabotaram as informações e tomaram o partido de curandeiros.

Nesse meio-tempo, nunca deixaram de zelar pela autoimagem, posando de justiceiros, a ponto de o título do relato anônimo sobre Jval Bhasma resumir em uma única frase, à maneira de um conto moral, a perplexidade do viajante abássida diante do caráter farisaico do país: “Por que os moralistas se lambuzam com a indecência?”.

A falta de coragem para assumir delitos passados os aproximou naturalmente dos que também tentavam encobrir seus atos e escapar à justiça. E assim foram aprendendo a defender seus interesses de acordo com as oportunidades.

A desculpa de obedecer a ordens superiores não isenta ninguém da responsabilidade de pensar por conta própria, se é que goza dessa faculdade. Quanto menos assumiam sua culpa, mais criminosos se tornavam, mais afundavam no lodaçal.

É claro que não podia terminar bem. O mais incrível foi precisamente o modo como Jval Bhasma acabou. E aí essa estranha inversão de alvos e objetivos, mirando as próprias entranhas, ganha toques ainda mais perturbadores de inépcia e estupidez.

Jval Bhasma possuía tesouros naturais dos quais dependiam também os reinos para além das fronteiras. Ali a vida nascia e se renovava. Ali brotavam rios que alimentavam não só o país mas terras distantes.

O vício do pensamento invertido, porém, levou-os a uma dedução espantosa, estúpida e não menos suicida. Projetando no exterior, em ataques imaginários de estados vizinhos e distantes, a maior ameaça a suas riquezas naturais, o Exército tomou a dianteira e as destruiu antes que pudessem ser roubadas.

Na lógica peculiar dos generais, destruiu-as “em proveito próprio”, seja lá o que isso quisesse dizer, para acabar de uma vez por todas com a ameaça, em nome da soberania nacional. E enquanto as destruía, continuava tentando desviar a atenção, pondo a culpa da destruição no fantasma estrangeiro da sua conspiração paranoica.

Acostumados a apontar as armas para um suposto inimigo interno, quando precisaram de um bode expiatório exterior para encobrir a própria incúria, explodiram Jval Bhasma. O reino ardeu até se reduzir às cinzas que seu nome anunciava, mas que a proverbial compulsão autodestrutiva, comprometendo a capacidade cognitiva na fumaça de suas ações, impedia-os de compreender.

Como o relato só foi transcrito dois séculos depois de ter sido narrado, muitos historiadores acreditam que seja uma alegoria, um alerta aos abássidas contra as milícias turcas que eles próprios criaram e fomentaram para servi-los, e que terminariam por corromper e implodir o império. O absurdo da situação narrada no relato sobre Jval Bhasma pesa na conclusão de que só pode ser uma peça de ficção sobre um país que nunca existiu.

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