Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

Ninguém quer matá-la, professora Sâmia, são crianças!

O aluno que a senhora acusa é apenas um rapaz com os hormônios em ebulição

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Bom dia, professora Sâmia, puxe uma cadeira. A senhora reclama que ninguém a leva a sério. Manda um relatório atrás do outro, alega que em vão. A senhora diz que não aguenta mais, que o mal não tem fim. Acha que perdeu uma parte da história. Pois acho que perdeu mesmo.

No seu último relatório, a senhora acusa um aluno de desafiar sua autoridade em sala de aula. Sim, o de sempre, mas dessa vez com xingamentos fortes, eu entendi. Não, não vou repetir. Leite moça. Sim, são palavras pesadas, mas, digamos, naturais nessa idade. Temos que dar uma chance a esses garotos.

A senhora o acusa de manipular a turma, de arrebanhar os coleguinhas fracos de caráter, de minar os alicerces da nossa instituição. Me desculpe, professora, mas a senhora não estaria carregando nas tintas? Veja bem, é apenas um rapaz com os hormônios em ebulição. Leio: “O mau elemento deve ser extirpado enquanto há remédio”. A senhora me faz rir. Estamos lidando com rapazes cheios de sonhos.

Sala de aula do colégio Rio Branco, em São Paulo - Zanone Fraissat - 1º.fev.21/Folhapress

Pesadelo? Bom, estou tentando chegar a um consenso, mas para isso a senhora precisa colaborar, ouvir o outro, precisamos partir de um denominador comum. A senhora define como sedição —sim, sedição, está escrito aqui— o que não passa de uma provocação própria da idade. Veja sua má vontade ao descrever o comportamento do coleguinha que, surpreendido pelo xingamento, a princípio não sabe como reagir, hesita, olha para os lados e, uma vez escorado na reação da classe, também passa a rir e aplaudir antes de se juntar ao coro: “Mata! Mata! Mata!”

Sim, eu sei que se referiam à senhora, mas em sentido figurado. As armas são um detalhe. Ninguém quer matá-la, professora Sâmia. A senhora chama o coleguinha hesitante de “maria vai com as outras”, eu reproduzo seu relatório: “Aluno medíocre que, depois de sofrer todo tipo de bullying, enfim encontra sob as asas de um desajustado o porto seguro para sua mediocridade e covardia”. Pesado.

A senhora diz que a falha de caráter é catalisadora, que ela identifica, atrai, arregimenta e incentiva gente incapaz de reconhecer o limite de sua incompetência e de assumir a responsabilidade por seus atos. Pelo amor de Deus, professora Sâmia! São crianças! Se pelo menos a senhora se ativesse à sala de aula! Mas a senhora acusa o aluno de vender pochete de paraquedas na porta da escola pra fazer um pé-de-meia! Qual o problema, professora Sâmia? Nasce um empreendedor.

Não é assim que a senhora o vê. Não. A senhora o acusa de vender naftalina por bala de menta, o que aliás nunca ficou provado, e de contratar amiguinhos de fora da escola para “arrebentar” —veja bem o verbo: “arrebentar”, sim, pesado!— a cara dos melhores da classe. E mais: a pedido dos pais dos coleguinhas mais ricos e menos estudiosos. Por favor! E a senhora ainda me diz que não vê nenhum preconceito nisso? Nenhum racismo? “Ricos e ignorantes”? Inverossímil, no mínimo.

Só faltava a senhora dizer que as cotas são a verdadeira meritocracia! A senhora acusa esse rapaz de receber dos pais dos coleguinhas para quebrar a cara dos melhores da classe! Para não haver termos de comparação?! A senhora está delirando, professora Sâmia?

Pois vamos esclarecer uma coisa. Educação pode ser um negócio bonito, em tese, mas uma escola depende de várias coisas. Onde é que vamos conseguir nossas receitas, professora Sâmia? Onde? Quem tem esperança é palhaço. Aqui ensinamos o sentido prático da vida.

A senhora quer saber por que suas acusações caem no vazio da indiferença? Porque estão focadas num falso inimigo. A senhora está me acompanhando? Quando digo “nasce um empreendedor”, não estou exagerando. O rapaz tem a confiança dos pais dos alunos que veem no que a senhora chama de escória a garantia do futuro dos filhos.

E é aí que a senhora resolve alertar a diretoria sobre o perigo da origem das nossas receitas? A “qualidade e o valor do nosso dinheiro”? É denúncia? A senhora diz que ele está jogando na nossa cara o retrato da nossa mediocridade moral e intelectual, o nosso fracasso civilizatório! Mais: a senhora ameaça, dizendo que vamos pagar pelas nossas escolhas. Afinal, que é que a senhora quer dizer com isso?

Que história é essa de chamar a diretoria à responsabilidade e à visão de longo prazo, alertando para a “indecência e o suicídio do nosso capital”, seus “efeitos deletérios contra os alicerces da escola que ele financia”? A senhora está chamando a gente de burro e de bandido, professora Sâmia? Quando foi que a senhora resolveu chutar o pau da barraca?

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