Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Bernardo Carvalho

Poesia, mais pergunta do que resposta, é o avesso da fé

Melancolia de versos do novo livro de Paulo Henriques Britto rima com nosso atual estado de resistência desencantada

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Que poesia pode haver à beira do abismo, encurralada pela barbárie que insiste em arrombar a porta, o banditismo associado ao fanatismo religioso, apossando-se do Estado, comungando da mesma cruzada hipócrita contra a lei e o direito? Que poesia pode haver diante do oportunismo suicida, da normalização da imbecilidade e do horror?

"Uma poesia rala e pobre,/ que espelha a mesquinhez do nosso tempo", responde Paulo Henriques Britto no recém-lançado "Fim de Verão" (Companhia das Letras), fazendo paradoxalmente o contrário. Verão, aliás, "que já ninguém aguenta", um calor insuportável que, contradizendo o título, nunca acaba.

O poeta e tradutor Paulo Henriques Britto - Lucas Seixas - 30.ago/18/Folhapress

A melancolia lúcida e lúdica desses versos rima com o atual estado de resistência desencantada, que apesar de tudo ainda supõe a graça, o que faz de Emily Dickinson uma bem-vinda companheira e cúmplice desse livro encantador. É de um poema dela que o autor tira três traduções e 13 variações sobre a fé, pois há coisas que nunca é demais repetir de variadas maneiras.

Vão aqui três delas: "A fé é uma ferramenta/ que tem inegável mérito:/ com ela, gasta-se menos –/ por menos usá-lo – o cérebro." Ou: "O microscópio revela/ o real em sua minúcia./ Contra ele, ergue-se a fé/ com sua estúpida astúcia". Ou ainda: "O prudente, com seu microscópio/ um dia morre, sozinho./ E o cavalheiro da fé?/ – Morre igualzinho".

Lá pelo final do poema que dá título ao livro, o poeta faz a pergunta inevitável: "É tempo de colher/ o que ninguém queria ter plantado/ só que plantou, querendo ou não./ Como chegamos a este estado?".

A resposta se encontra algumas páginas antes, sob o título "Imunidade de rebanho": "A estupidez é sua própria recompensa". E logo a seguir: "[...] Olhai/ as vacas do campo: não lhes faz falta a ciência,/ pastam em plena bem-aventurança,/ sem que nenhuma antevisão do matadouro/ perturbe a santa paz da ruminança."

Está claro que o poeta é avesso não apenas à fé, mas também à metafísica: "Se fosse o Ser quem fala no poema/ eu calaria a boca, e é até possível/ que o escutasse, um pouco. Sem problema"; "há que fingir que se pensa/ o impensável, por mais que custe/ incutir essa incrível crença/ no próprio autor do embuste".

Mas é difícil não pensar, pela própria ironia dos versos, que a resposta à pergunta que abre este texto (que poesia à beira do abismo?) esteja justamente no que não faz falta, porque não se vê ou não se conhece ("falta não sente do que nunca soube"); que a poesia seja também isso: o contrário do pasto. Um esforço crítico de pensar o impensável no mundo concreto e físico, expressão do inconcebível no real, antevisão do matadouro, sem perder a graça.

Não sei a quantos brasileiros (as pesquisas têm procurado nos dar uma estimativa) falta hoje a antevisão do matadouro e a quantos o matadouro é impensável, simplesmente porque não lhes diz respeito. Acham que essas coisas só afetam os outros, que elas estão demasiado distantes. Sentem-se imunes, não imaginam o matadouro ao virar a esquina. Ou talvez com ele se identifiquem, e ainda esperem tirar alguma vantagem, o que faz deles um caso perdido.

Uma das máximas de Bernardo Soares no "Livro do Desassossego" diz que "Ser lúcido é estar indisposto consigo próprio". É o antídoto ao suicídio narcisista e à estupidez. E nunca é demais repetir, em que pese o risco do lugar-comum, que o desassossego é condição tanto da poesia como do pensamento crítico e da verdade.

A estupidez pede um sentido único para o mundo, que seja aparentemente tão fácil e simples de reconhecer como o próprio rosto no espelho. Saber cansa, os sentidos são sempre múltiplos, contraditórios e diversos. Melhor não. Foi assim que chegamos a este estado. Pelo caminho mais curto.

Já a poesia aparece onde não é chamada, muitas vezes onde nem bem-vinda é, anunciando o que ninguém perguntou, trazendo o que não se quer saber, o rosto desconhecido no espelho. Está do lado da dúvida, da indisposição; é mais pergunta do que resposta. É o que não se espera, o que não se prevê, o que não faz falta. Não dá para doutrina nem para farsa. É o avesso da fé.

Paulo Henriques Britto recorre às formas fixas para relatar o mundo físico, concreto e sensorial, só que em decomposição. Vem daí muito da graça e da contradição sem as quais não seria possível descrevê-lo. É assim que o poeta o define num poema chamado "Sobre o real": "Aqui tudo é uma aposta/ mais ou menos às cegas. Sim. Bem-vindo/ ao mundo do que há. Ficou surpreso?/ É estranho? Assustador? Eu acho lindo".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.