Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Bia Braune

Se a vovó era uma jovem devassa? Graças a Deus, minha netinha

A exemplo de tantas ex-jovens que avançavam às margens do caminho, meu sonho é ser questionada pela futura geração

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sentadas à beira da piscina do clube, falavam sobre os valores da tradicional família brasileira. Um regimento de idosas ao sol, botando axiomas morais para quarar, enquanto cuidadoras vestidas de branco aguardavam na sombra.

Olhando de longe, pensei que agiriam igual debaixo de chuva, rezando o terço em meio a uma manifestação em favor dos bons costumes. Mas, na prática, se ninguém está vendo, o que realmente é de costume?

Indo embora dali, logo me lembrei de Julieta, prima mais velha do meu pai. Parente pelo lado afastado que tomava chás e jogava bridge. Dotada de um cabelo grisalho bem cuidado, com rinsagem lilás. E de um aroma peculiar que misturava água de rosas e cheiro de guardado.

Na ilustração de Marcelo Martinez, uma senhora idosa dança com seu andador, sozinha, em sua casa, enquanto lembra de seus tempos como dançarina de um corpo de baile
Marcelo Martinez

Contava-se que ficou solteira pois o noivo fugiu, legando-a ao estado civil de "titia". Uma Julieta sem Romeu. Muito calada sempre que a visitávamos, ao lado de um carrilhão que badalava horas vazias.
Quando morreu, frágil e octogenária, disseram que o plantonista da madrugada havia desligado seus aparelhos. Nada mais a fazer, só o fim.

Contudo, de tanto observar mulheres mais velhas, recuso-me a enxergar apenas o recato e a moderação esperados da idade avançada. Por entre pílulas para pressão alta, falta remédio para a amnésia coletiva. Quantas ali não foram as subversivas e libertárias de seu tempo? Escandalizando em trajes de banho com duas peças. Fumando e dirigindo automóvel. Votando. Amando mais de um homem ou outras mulheres. Criando filhos sem marido. O rímel borrado pela emoção de noites regadas a liberdade e doses de gim, porém apagadas dos registros oficiais.

Aliás, foi durante um jantar —e graças a uma prima levemente alcoolizada— que a vida dupla de Juju enfim se revelou. Escondida da família, ia tocar piano na penitenciária de Água Santa. Num bolso cerzido na anágua, levava cigarros aos presos da ilha das Flores. Entre eles o famoso Carne Seca —noivo que fugiu não por desamor, mas porque tinha assaltado um banco.

(Okay, a parte do Carne Seca é coisa da minha cabeça. Todo o resto era seu doce e secreto perfume de transgressão. Uma Julieta com cabelo roxo e coração vermelho.)

Chegar ao fim da vida podendo ser tida como do bandalho, da balbúrdia, da pá-virada. Piranha até, por gosto e convicção. Que honra. A exemplo de Juju e tantas ex-jovens que avançavam às margens do caminho e hoje passeiam de andador e cadeira de rodas, meu sonho é ser questionada pela futura geração.

"Vovó, você era devassa?" "Graças a Deus, minha netinha."

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.