Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu
internet

Um beijo no pâncreas aos médicos que curam os hipocondríacos digitais

Acudir gente querida e sem noção, que pesquisa doença na internet de madrugada, é uma especialidade da medicina

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Acontecia ali pelas duas da madrugada. A mão tá dormente? A testa sua? O peito palpita? "Peraí, deixa eu checar se estou nas últimas". Assim abriam-se os portões do inferno e pelo menos 47 abas diferentes na tela minúscula. O brilho do celular incapaz de iluminar minha falta de juízo.

Sempre admirei hipocondríacos da série A. Craques em todo tipo de ziquizira. Gente que ama princípios ativos e organiza os remédios de sua farmacinha por posologia, indicação, ordem alfabética ou cor de tarja.

No cartum de Marcelo Martinez, um homem mostra, de forma exagerada, sua língua para a tela de um computador – onde um grande olho o examina
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 13.nov.2022 - Marcelo Martinez

Eu não. Incapaz de diferenciar ibuprofeno de dipirona, usuária no máximo de tabletes efervescentes sabor laranjada, pertenço a uma indigna categoria de doentes imaginários: a dos hipocondríacos digitais. Neuróticos o bastante para sair catando mal-estar na internet, mas não incomodados o suficiente para marcar consultas e tomar um comprimido, uma atitude ou tenência.

Sou viúva do site Yahoo Respostas, onde qualquer coisa era aneurisma, infarto do miocárdio ou espinhela caída. Cheguei a googlar os sintomas que me acometiam ao lado de termos mais confiáveis como "Drauzio" e "Varella". No entanto, julgo ter encontrado a cura definitiva para minha condição. Ou talvez um analógico placebo: Ana Lúcia.

Quando nossos filhos foram estudar juntos, percebi o efeito milagroso de uma médica em meu círculo social. Bastou uma tarde cansativa e deprê na saída da escola para que ela, com olhar treinado, dispensando anamneses, erguesse a mão para o rapaz da cantina. Como quem solicita apenas o necessário a um instrumentador cirúrgico: "Tesoura... Bisturi... E um chocolatinho pra nós duas, porque estamos precisando!". O alívio foi imediato.

De lá para cá, deixei de acordar sobressaltada na calada da noite. Saber que Ana Lúcia está à distância de um emoji de termômetro —quiçá ao alcance de um áudio pedindo socorro com nariz entupido— apazigua a alma.

"Bom dia, amiga, eis o laudo da minha endoscopia". Assim podem começar nossas conversas. "Que os dígitos do seu saldo bancário estejam equivalentes à minha taxa de leucócitos". É o que desejo a ela, uma vez que Ana não admite cobrar nada.

Acudir gente querida e sem noção é uma especialidade médica. Se você é doutor nesse assunto ou tem amigos dessa cepa, há de concordar comigo. Dá até vontade de mandar um "beijo no coração" desses profissionais, mas acho a expressão muito melosa. Taí, capaz de Ana Lúcia pedir um hemograma para checar meu açúcar. Fica, então, meu mais sincero e grato beijo no pâncreas.

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