Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Meninos goleiros possuem algo que às vezes escapa pelos dedos da torcida

Na infância, todas as partidas se davam pontualmente entre o fim da 'Sessão da Tarde' e a hora do lanche

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João era mais novo, mas um palmo e meio mais alto e ombrudo em relação aos outros moleques. Algo que dificultava na hora de atravessar o buraco que dava para o terreno baldio, mas sem abalar o garbo de pequeno gigante de 11 anos.

Deslocava-se pela grama falhada e repleta de poças com a ginga grandalhuda dos que já têm a solidez necessária. "Vai pro gol, João, tranca lá!", gritava um baixote de aparelho fixo, capitão do time menos por
mérito e mais por ser dono da bola. "Faz a muralha humana!" —e a isso se resumia sua preleção. João posicionado entre uma vassoura e um rodo cedidos pela avó, à guisa de traves.

Na ilustração de Marcelo Martinez, as pernas de um jovem goleiro. Ele é muito alto, maior do que a baliza do gol
Marcelo Martinez

No verão, todas as partidas se davam pontualmente entre o fim da "Sessão da Tarde" e o lanche, respeitando o fuso horário das férias. Sem prorrogações negociáveis com pai, mãe ou juiz, pois ao anoitecer os mosquitos faziam marcação cerrada nos gambitos juvenis. Poupavam os de João, que usava meiões reforçados e uniforme completo, com luvas, num profissionalismo que ia além da várzea delimitada por chinelos de dedo.

Seu quarto, que eu e uma prima costumávamos invadir, num esquema tático ultrassecreto de olheiras mirins, também refletia essa paixão pelo esporte bretão. Ao contrário de guris obcecados pelo próprio time, dormia num hall da fama com pôsteres de Pelé, Zico, Romário e recortes sobre Renato Gaúcho no infame gol de barriga pelo Fluminense.

Um dia, reparei na única foto de ídolo que não era atacante. Colado à cabeceira da cama, o goleiro Barbosa. Entre altivo e pesaroso, com o rosto coberto pelos quadradinhos da rede. Uma recordação triste da derrota de dois a um no Maracanazo.

Durante aquelas copas de bairro, jogo era jogo. Ninguém parava para pensar que a bola rola diferente para garotos feito João. Havia ali a estatura ideal para o posto, mas também uma convicção.

Um senso solitário de responsabilidade, típico de quem troca o sangue que corre nas veias do ataque pela tensão que desemboca na paz de espírito da defesa. Como se todo menino goleiro possuísse uma honradez e um altruísmo que escapassem por entre os dedos dos que consideram o gol —e apenas o gol dos artilheiros— o grande momento do futebol.

"João!", vibrávamos, enquanto o gigante espalmava suas glórias no filó. Fosse qual fosse o resultado, a taça mais importante estava garantida: um sundae do tamanho de sua categoria. Preparado pela avó e filado pela torcida lambuzada de marshmallow, orgulho e repelente.

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