Foi como chegar ao céu para prestar conta dos meus pecados. Mas em vez de são Pedro e seu cajado, encontrei Rita 4.91 e fui julgada a bordo de um Grand Siena vermelho.
"Olha, você me perdoe a curiosidade...". Com mãos enormes e unhonas de acrigel, ela girava o volante e fazia perguntas com igual suavidade. "Por que sua nota como passageira é tão baixa?".
Taí, eu não tinha noção de estar tão aquém da expectativa dos motoristas de aplicativo. Quem anda quieto no banco de trás perde ponto? Quem não discute política nem bate porta pode ser cancelado? Como assim, não era a Nádia Comaneci dos choferes de praça? Não tinha um dez absoluto?
"Por isso que tô estranhando. Você é simpática, educada." Olhando pelo retrovisor, Rita me lança a pergunta existencial definitiva. "O que anda fazendo de errado?".
Era o que me faltava. Para além das tradicionais resoluções de ano novo, ter de incluir "ser uma pessoa melhor para Éderson 4.89 num Fox preto", "um ser humano mais digno para Wesley 4.92 num Voyage prata" e, a mais humilhante de todas, "alcançar a quase perfeição de Elói 4.99, num carro ainda com cheiro de novo".
Bem, confesso que há tempos eu desconfiava de um carma X —bastante uncomfort— rondando minhas solicitações. Sobretudo ao trocar mensagens dessa categoria: "Ruy 4.92 está a caminho". E na sequência: "Estou indo". Eu: "OK". "Não demoro". Eu: "OK". "Vou aí te pegar". Que é isso, mermão? Te dei liberdade? Pensava, mas respondia: "OK". "Peraí, tá quase". Eu: (...). E por fim: SUA VIAGEM FOI CANCELADA. Quer dizer: até trajeto de Uber pode virar um relacionamento abusivo.
Repassei mentalmente tudo que poderia ter me conduzido a tão deplorável desempenho no carona: perfume cítrico demais, não pegar balinha, pedir ao amigão para puxar o banco (sabe como é: pernas compridas). Vez ou outra, atendo ligações imaginárias quando o piloto conversa demais. Não cheguei a qualquer conclusão, apenas ao fim das corridas. Ou, poeticamente falando, tal como um GPS, ao meu destino.
A lição de autoestima para 2023, contudo, veio me buscar num carro batido, com para-choque de outra cor, preso com fita. Dirigia descalço, a unha do dedão encravada. Uma perda total ambulante, porém de altivez inabalável. E boa praça. Conferi no celular, mas nem precisava: era um nota 5.00.
"Tenha um bom ano, moça. Não se esqueça de avaliar". Vou sim, pensei. Minha vida como um todo. E partiu, rumo ao nirvana automotivo.
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