Bruno Gualano

É professor do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP. Também é autor de 'Bel, a Experimentadora'

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Bruno Gualano
Descrição de chapéu Corpo genética

Magro de ruim

Compreender por que o magro de ruim resiste ao nosso ambiente de engorda revolucionaria o tratamento da obesidade

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Enquanto a maioria travamos luta diária contra as modernidades feitas para nos engordar, circula, incólume, aquele sujeito esbelto, avesso ao exercício e glutão com exultação. O famigerado "magro de ruim".

Nossa cisma com o dito-cujo tem lá seus fundamentos. Afinal, se nosso corpo foi feito para armazenar gordura e vivemos sob um implacável ambiente de engorda, por que alguns afortunados escapam da ameaça da obesidade?

O biólogo britânico John Speakman (Universidade Abeerden, Reino Unido) oferece uma interessante explicação evolutiva para o paradoxo.

Antes, é importante dizer que o cientista não compartilha da visão adaptativa da obesidade. Essa hipótese considera que a nossa eficiente capacidade de acumular gordura teria representado uma vantagem aos nossos antepassados hominídeos, protegendo-os de crises de escassez de alimentos. Deste cenário, teria sido selecionado um genoma poupador, que exposto à abundância de comida e à insuficiência de movimento, nos predisporia à obesidade.

Em sua crítica à tese, Speakman defende que a insegurança alimentar não teria se firmado como um fator vital à evolução da nossa espécie. Para ilustrar o ponto, cita o caso do Homo erectus, que tinha em seu cardápio carnudos herbívoros africanos, entre os quais os elefantes. E lembra que o próprio Homo sapiens, em seus primórdios, tinha o hábito de caçar mais do que conseguia comer —hipótese, aliás, que explica a extinção de várias de suas presas, e que, convenhamos, não combina exatamente com um ambiente de carência de alimento.

Segundo o cientista, fosse a falta de alimento uma pressão decisiva no sucesso evolutivo, o excesso de peso seria um traço onipresente da nossa espécie. Certamente não é o caso. Mesmo nos Estados Unidos —o país mais assolado pela obesidade— cerca de 65% das pessoas não são obesas.

Speakman prefere uma visão não adaptativa da obesidade, que pressupõe a presença de um sistema de controle de dois pontos, entre os quais seriam represados a gordura e o peso do indivíduo.

O ponto inferior teria como função evitar que os estoques de gordura extrapolassem níveis críticos, a ponto de causar inanição e prejudicar a reprodução e a resposta imune a agentes patológicos.

Já o superior operaria contra outra ameaça à sobrevivência: o excesso de peso. Com efeito, indivíduos mais pesados —e de várias espécies— tiveram menor sucesso ao longo da evolução, pois (1) necessitavam de mais alimentos para suprir suas demandas energéticas e (2) eram presas mais fáceis pela falta de mobilidade.

Se esse cenário evolutivo persistisse, poderíamos apostar que a obesidade seria rara hoje em dia. Porém, há cerca de 2 milhões de anos, mudanças sociais profundas introduziram novas adaptações.

Nossos antepassados passaram a viver em grupos, para se protegerem de ataques de predadores. Além disso, a descoberta do fogo e das armas trouxe substantiva vantagem aos hominídeos contra seus algozes.

Em bando e armados, indivíduos mais pesados e menos ágeis aumentaram consideravelmente suas chances de se livrarem da predação. Assim, o ponto de controle superior do peso corporal tornar-se-ia dispensável à sobrevivência. E os genes responsáveis por tal regulação sofreriam mutações imprevisíveis. Consequentemente, alguns indivíduos estariam mais suscetíveis à obesidade, e outros praticamente imunes a ela —estes, os sortudos na loteria da evolução.

Uma tese evolutiva coteja evidências genéticas, ecológicas, clínicas, demográficas, antropológicas, comportamentais, arqueológicas etc. Diversas premissas são tomadas como verdadeiras, mas a testagem delas em laboratório nem sempre é possível. É, enfim, um intrincado e fascinante quebra-cabeça —que precisa ser remontado sempre que uma peça não encontra seu exato encaixe.

E as peças têm se encaixado bem para a hipótese não adaptativa da obesidade. Ela explica por que aquele meio quilo inconveniente que acumulamos durante as férias —situado numa "zona neutra" entre os dois pontos de regulação do peso— não estimula uma resposta fisiológica intensa com vistas a eliminá-lo, infelizmente! E explica também por que alguns pés-quentes expostos, rotineiramente, à má alimentação e ao sedentarismo não se tornam obesos.

Resta desvendar todo o conjunto de atributos moleculares, fisiológicos e comportamentais que permite ao "magro de ruim" resistir ao ambiente obesogênico. Seria o prenúncio de uma revolução no tratamento da obesidade.

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