Bruno Gualano

É professor do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP. Também é autor de 'Bel, a Experimentadora'

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Bruno Gualano
Descrição de chapéu Corpo universidade

Modulação hormonal é roleta-russa

O uso de esteroides anabolizantes para fins estéticos traz graves riscos à saúde, mesmo com acompanhamento profissional

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Em 1939, a dupla Adolf Butenandt e Leopold Ruzicka foi laureada com o Nobel de Química pela descrição da síntese de testosterona. A descoberta viria a beneficiar homens com deficiência na produção desse hormônio —o chamado hipogonadismo, que resulta em perda de força, libido, fertilidade etc. Mas não foram os efeitos terapêuticos que deram à testosterona e seus análogos o cartaz atual.

Na década 1950, os esteroides anabolizantes invadiram o esporte. Na Alemanha Oriental, um amplo programa de dopagem —revelado por documentos secretos obtidos após a queda do regime comunista— ajudou a produzir 150 medalhas de ouro em três décadas.

Mais impressionantes do que os resultados esportivos são os relatos dos atletas dopados, que sofreram com graves sequelas. "Os corpos são destruídos, as almas, também", denunciou a ex-corredora Ines Geipel, que presidiu uma entidade de apoio às vítimas, em sua maioria, mulheres.

Ampolas de esteroides anabolizantes
Ampolas de esteroides anabolizantes - Divulgação/Polícia Civil

Levantamentos indicam que o uso de anabolizantes extrapolou o esporte de elite. Hoje, praticantes recreacionais de atividade física —os que treinam por estética, prazer ou saúde— são os maiores adeptos dessas drogas.

Mundialmente, estima-se que 18% das pessoas que fazem exercícios usam esteroides anabolizantes. No Brasil, a proporção de usuários pode chegar a 33% entre praticantes de musculação, em números subestimados pelo autorrelato.

Ante a indicativos de uma verdadeira epidemia de anabolizantes, causa assombro que um crescente número de profissionais da saúde chancele o uso dessas drogas para fins não terapêuticos.

Muitos desses profissionais se arvoram na premissa de que, com regimes de doses e monitoramento adequados, é possível alcançar resultados estéticos com segurança. A prática tem sido propalada, genericamente, como modulação hormonal —um eufemismo ética e legalmente conveniente para quem teme ser enquadrado como prescritor de "bomba".

Ocorre que a tal da modulação hormonal não tem lastro lógico. Em baixas quantidades, anabolizantes não trazem benefícios relevantes. Para que haja ganhos reais, são necessárias doses suprafisiológicas, capazes de manter as taxas de testosterona acima da faixa de normalidade.

A sinuca é que, justamente nessa condição, são maiores os riscos de eventos adversos: aterosclerose, cardiomiopatia, arritmias, hipogonadismo, hipertensão, insuficiência renal, câncer de próstata, distúrbios de humor e imagem corporal, dependência, virilização (acentuação de traços masculinos, como excesso de pelos faciais e corporais, calvície, acne, voz grave, hipertrofia do clitóris), subfertilidade, hepatite, irregularidades menstruais etc. (paro aqui por limitação de espaço).

Nada indica que o acompanhamento do paciente com exames de rotina e prescrição de "drogas preventivas" possa blindar contra eventos adversos tão complexos, sobretudo pois muitos destes podem levar anos para se manifestar.

Como encontrar o fino ajuste de dose capaz de produzir benefícios sem causar malefícios? A ciência está longe da resposta (se é que ela existe), mas o prescritor de esteroides —volta e meia usuário ele próprio— se julga capaz de tal feito, ao melhor estilo "la garantia soy yo!".

A experiência pessoal descolada da ciência não é suficiente para caucionar riscos à vida. A prescrição cosmética de anabolizantes não é razoável, especialmente à luz do aforismo bioético universal que subvenciona os cuidados ao ser humano: "primum non nocere" (primeiro não prejudicar).

O anabolizante é um atalho na busca do corpo ideal, mas ninguém sabe dizer se ou quando chegará a conta, nem seu preço. Quem prescreve a modulação hormonal por estética (no que se inclui o "chip da beleza", talvez chamado assim pelo belo estrago capaz de causar) dá de ombros aos riscos que corre o paciente. Ao que me consta, brincar de roleta-russa não faz parte do rol de condutas do profissional da saúde.

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