Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso
Descrição de chapéu câncer

Um email com o nome do meu irmão morto salvou minha vida

Quando chamaram a ambulância, só consegui lembrar que era 8 de setembro, o mesmo dia em que o meu irmão faleceu

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Em agosto de 2015, eu, minha esposa e meus dois filhos fomos passar um fim de semana em Ouro Preto. Depois de muito tempo morando em São Paulo e Brasília, tínhamos nos mudado para Belo Horizonte um ano antes e voltamos a Ouro Preto pela primeira vez depois de mais de 20 anos.

No sábado, visitamos os principais pontos turísticos, e eu sempre com a imagem do meu irmão Lincoln na cabeça, em todos os lugares. Ao sair do Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas, na praça Tiradentes, me dirigi à murada que, da rua dos Camargos, deixa ver, mais abaixo, a república Baviera, em que ele morou durante oito anos, de 1985 a 1993. Ali fiquei algum tempo, lembrando sua história.

Depois de formado em engenharia metalúrgica, Lincoln se mudou para a Bahia, onde trabalhou por dez anos e conheceu sua esposa. Em seguida, foi trabalhar em Araxá (MG), cidade em que teve os filhos e, em 2012, foi contratado por uma empresa em Goianésia (GO). Mas a sua identidade ficou sempre marcada por Ouro Preto e pela Baviera.

Cadete da Polícia Militar de Minas Gerais conduz coroa de flores ao monumento a Tiradentes, na Praça principal de Ouro Preto
Cadete da Polícia Militar de Minas Gerais conduz coroa de flores ao monumento a Tiradentes, na praça principal de Ouro Preto - Ane Souz - 21.abr.21/Divulgação/PMOP

Poucos meses depois de ir para Goiás, ele, embora sem sintomas, foi diagnosticado com câncer em estágio avançado: começou no intestino, mas já havia tomado o fígado e os pulmões. Iniciou a quimioterapia em Goiânia, se submeteu a cirurgia para colostomia — que teve que ser refeita, com muitas complicações — e, em meados de 2013, foi para São Paulo, para um novo tratamento no Hospital Sírio-Libanês.

Ficou hospedado no nosso apartamento de então, em Perdizes. Foram novas cirurgias, quimioterapia, alguns progressos, outras pioras, esperanças temporárias derrubadas por reincidências e eventos inesperados, radioterapia — enfim, de junho a setembro de 2013, tivemos uma convivência alegre e dolorosa com ele e sua família.

Até que ele faleceu, aos 49 anos. A filha tinha 7 anos, e o filho, 5.

De volta a agosto de 2015: em Ouro Preto, no domingo, fizemos um rápido passeio pela manhã e fomos almoçar no restaurante Casa do Ouvidor, na rua Conde de Bobadela — em linha reta, a cerca de 170 metros da murada da rua dos Camargos. À mesa, antes do pedido, acendeu o aviso de email no meu telefone. Era um spam, como tantos outros, só que esse tinha como remetente Lincoln Piva.

Assustei-me. Mostrei o email à minha esposa e aos meus filhos. Embora eu saiba que existam vírus que detectam nomes na sua lista de contatos e espalham mensagens, não parecia razoável: nunca tinha acontecido algo assim enquanto ele estava vivo e, passados já dois anos de seu falecimento, eu não tinha qualquer mensagem dele armazenada nem seu nome estava mais nos contatos.

O acaso, ou o que seja, fez com que tal spam chegasse justamente ali, em Ouro Preto, poucas horas depois da minha “visita” à Baviera.

Retornamos a Belo Horizonte no domingo ao final da tarde. Eu teria exames de check-up (que há muito tempo eu não fazia) na manhã da segunda-feira. O primeiro deles, um ultrassom abdominal às 7h. Decidi que não iria, por preguiça, mas à noite, pouco antes de dormir, pensando intrigado no spam, me recordei de tudo o que tinha acontecido com o meu irmão e mudei de ideia. Resolvi fazer o procedimento.

A médica passava o aparelho pelo meu corpo e conversava tranquilamente quando, quase ao final, notei seus olhos pararem. Sua expressão se alterou. Perguntei o que era, e ela demorou a responder. Passou novamente o leitor no trecho da barriga que lhe chamara a atenção. Seguiu em silêncio. Terminou o exame e deu o diagnóstico: câncer no rim.

Daí em diante, foi um turbilhão: consulta de emergência, tomografia de emergência, agendamento de cirurgia, autorização demorada no plano de saúde, a cabeça disparatada para o trabalho ou para qualquer outra coisa e a conversa terrível com os filhos.

A cirurgia ocorreu em uma sexta-feira, e o rim esquerdo foi retirado. No domingo, me deram alta, mas eu não estava bem. Passava mal, o intestino preso, a pressão baixa, uma grande arritmia. Dois dias depois, tive que voltar de ambulância ao hospital e lá passar quase sete dias terríveis, com vômitos, arritmia, sonda, um mal-estar horrível e a certeza de que iria morrer.

A certeza não vinha de nenhum diagnóstico. Vinha do dia em que eu, depois da cirurgia, tive que ser internado novamente. Como eu disse, tinha tido alta no domingo. Passei mal no mesmo dia. Piorei na segunda-feira e cheguei ao fundo do poço na terça-feira de manhã, quando chamaram a ambulância e eu mal conseguia saber o que ocorria.

Só consegui, em um lampejo, lembrar que aquela terça-feira era 8 de setembro, o mesmo dia em que o meu irmão Lincoln faleceu em 2013. Hoje, já tendo feito os cinco anos de acompanhamento e sendo considerado curado, sabemos que a nefrectomia radical foi realizada no momento exato, antes de o câncer começar a se espraiar.

Não sei se o spam com o nome do meu irmão queria me avisar alguma coisa ou se foi mero acaso, mas me salvou.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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