Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Casos do Acaso

Nunca tive coragem de falar com o desconhecido por quem me apaixonei

Durante o espetáculo, sentia nossas pernas se encontrarem e desencontrarem, nossos braços se encostando delicadamente

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

pedro a duArte

Estudante de Jornalismo, mora em São Paulo

Numa era pré-pandêmica, a bio do meu Tinder dizia: “Se minha vida fosse um filme, eu iria conhecer meu namorado numa livraria ou na plateia de um teatro. Como não é, estou aqui”. Esse sonho não era impossível. Eu assistia a 30 peças por ano, estatisticamente havia chances de conhecer meu namorado na plateia —se eu tivesse coragem.

O meio do teatro musical em São Paulo é um ovo. Se você é um fã que vai na noite de estreia, irá encontrar os outros fãs de sempre: rapazes gays de camisa florida e meninas de óculos grandes e batom vermelho.

A primeira vez que o vi foi no 033 Rooftop, na estreia de "Natasha, Pierre e o Grande Cometa de 1812", um musical de Dave Malloy dirigido por Zé Henrique de Paula. O rapaz era precisamente o meu tipo: magro, jovem, óculos redondos, uma vibe de nerd-fofo. Ele estava com seu grupo de amigos, e eu com o meu. Sentamos em lados opostos do salão e, durante a peça, não conseguia evitar olhar para ele.

Quem é fã de teatro musical adora a prática do "stagedoor". Então, ao final do espetáculo, nós estávamos esperando os artistas saírem do salão para conversar com eles. As pessoas foram embora, e meu grupo foi ficando, o grupo dele foi ficando. E minha amiga, que gosta de uma fofoca, viu o rapaz conversando com um moço de cabelo comprido. “Eu acho que eles estão tendo uma DR”, ela me falou.

A segunda vez que eu vi o rapaz de óculos redondo foi na noite de encerramento do "Cometão". Dessa vez, o moço de cabelo comprido não estava lá. Sozinho, eu poderia ensaiar puxar assunto com o rapaz, mas estava tão maravilhado coletando o autógrafo dos artistas que nem vi quando ele foi embora.

A terceira vez que eu o vi foi no Teatro do Núcleo Experimental, na noite de reestreia do meu musical favorito: "Lembro Todo Dia de Você", de Fernanda Maia e dirigido pelo Zé Henrique. Fui um dos primeiros a entrar na sala de espetáculo e estranhei quando vi que ele já estava lá dentro, sentado em uma cadeira. Acabei sentando ao lado dele.

Durante o espetáculo, sentia nossas pernas se encontrarem e desencontrarem, nossos braços se encostando delicadamente. Será que ele sentiu isso também? Será que, assim como eu, também desejava que nossas mãos se encontrassem? Ou será que achava irritante o toque discreto de um cotovelo estranho?

Quando estávamos saindo do auditório, reparei que ele se deteve. Estava desmontando algum equipamento no fundo da plateia. Quando finalmente saiu para o café, nossos olhos se encontraram. O tempo parou por um segundo. Analisei seu rosto, ele reparou no meu.

Ele tinha em mãos um tripé e uma câmera —supus que trabalhava para aquelas plataformas que fazem matérias sobre musicais. Pensei em oferecer ajuda para levar o equipamento a seu Uber, mas a timidez me impediu. Até hoje, não sei seu nome.

Eu sou péssimo para nome, mas ótimo para rosto, então rapidamente identifiquei o rapaz quando o encontrei no Tinder. Será que iria encontrar meu namorado no Tinder e não no teatro? Despretensiosamente dei like e para minha surpresa eufórica DEU MATCH!

...ele nem respondeu meu “Oiê!”

A última vez que eu o vi foi no Tucarena, na estreia da peça "Sede", de Wajdi Mouawad —e, é claro, dirigida pelo Zé. Em meio a diversos artistas que vieram prestigiar a montagem, eu só consegui prestar atenção nele quando entrou na sala de espetáculo. Ao final da peça, na base da escada que dava para o saguão, nossos caminhos se encontraram. Ele olhou para mim. Eu olhei para ele. Ele sorriu para mim —um sorriso convidativo e esperançoso.

Foi aí que abracei a minha mãe e comentei com ela qualquer coisa sobre o enredo. Me vi obrigado a seguir a regra não dita de jamais flertar com alguém na frente de seus pais. Passei o resto da noite pensando no erro que foi convidar os velhos para me acompanhar. Ele sorriu para mim! Se tivesse ido sozinho, eu podia jurar que dessa vez teria falado com ele.

No dia seguinte, novamente o encontrei no Tinder. Novamente o match aconteceu. Novamente não recebi uma resposta para o meu “Oiê. Tudo bem?”. Mas ontem ele sorriu para mim! E ter dado match com ele duas vezes não é pouca coisa —é seguro dizer que, no mínimo, ele me acha atraente.

Mas ainda havia uma esperança! Lembrei que, no mês anterior, o núcleo tinha anunciado para aquele ano uma montagem do musical "Quarteto Fantasma", de Dave Malloy, sob a direção de Zé. Roguei à deusa do acaso para que fosse benevolente comigo e me agraciasse com um quinto encontro com o rapaz na noite de estreia de "Quarteto".

Prometi a ela que, dessa vez, não desperdiçaria minha chance: iria desacompanhado e tiraria coragem não sei de onde para finalmente puxar assunto com ele. Quem sabe conseguir seu número?

Mas, um mês depois, a pandemia chegou e, com ela, a quarentena. Agora, eu passo meus dias deitado na cama, olhando para o teto e ouvindo a música "Fred Astaire", da Clarice Falcão.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.