Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso
Descrição de chapéu AIDS drogas

Depois de um teste de HIV, conheci um homem no bate-papo e, em seis meses, nos casamos

Quando o vírus se tornou mais agressivo, fizemos um pacto de morte, mas só conseguimos matar o que havia sobrado de amor

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Jú Miyoshi

Editora de vídeo e estudante de cinema, mora no Rio de Janeiro

Há alguns anos, venho tentando contar minha história, mas sem sucesso. Foram contos, poemas e até esboços de livros. Em todas as formas fracassei. Quando li a matéria sobre Casos do Acaso, percebi meu erro. Eu estava tentando escapar dos fatos reinventando o que eu vivi. Finalmente me sinto pronta para contar a minha verdadeira história.

O ano era 2003. Eu tinha 16 anos e estava decidida a ter um namorado mais velho. Me sentia incompreendida pelos rapazes da minha idade. A internet estava começando a se popularizar, mas os sites de relacionamento ainda eram escassos. Quando finalmente encontrei um, me cadastrei e em pouco tempo recebi a mensagem que começaria a mudar o rumo da minha vida.

Otávio tinha 54 anos e apenas uma foto de perfil, o suficiente para eu me encantar. Conversávamos por horas. Mesmo com a diferença de idade, tínhamos muita coisa em comum. Nosso primeiro encontro só confirmou o que eu já sabia: eu estava apaixonada por ele.

Começamos a namorar e tudo parecia perfeito. Mas, após 3 meses, ele passou a ter um comportamento estranho. Descobri que ele era alcoólatra. Em suas recaídas, se isolava. Num desses sumiços, minha mãe tentou descobrir algo, e uma conhecida em comum, que não sabia que eu era sua namorada, revelou que ele era uma pessoa problemática, bebia muito (isso eu já sabia), tinha HIV e só namorava “garotinhas” virgens.

Ao chegar em casa, ela me tomou pelo braço para fazer o exame. Eu não conseguia compreender o que estava acontecendo. No início dos anos 2000 um exame de HIV demorava uma semana para ficar pronto. Aqui o acaso entra novamente. Devastada, eu começo a procurar informações na internet, possíveis sintomas, como era conviver com a doença, etc. Fui parar no bate-papo UOL, com o codinome Claire encontrei CD4, um soropositivo que tirou todas as minhas dúvidas, me acolhendo no momento mais difícil da minha tão jovem vida.

O resultado saiu, deu negativo. Descobri que Otávio também não tinha HIV, mas me traia. Foi assim que o namoro acabou. Mas a amizade com CD4 perdurou. Seis meses após ter entrado naquela sala de bate-papo eu estava partindo rumo a São Paulo para me casar com o meu melhor amigo.

Foram dez anos de parceria. Juntos enfrentamos todo tipo de preconceito. Pensávamos ser invencíveis. Não éramos. Ele já convivia com a doença há 20 anos, seu corpo estava cansado. Por fim ela nos desgastou.

Fui diagnosticada como boderline. Eu não estava preparada para, tão jovem, ter que lidar com tantas dificuldades. Falhei com ele e ele comigo. Nossa relação, de bela, tornou-se tóxica. Éramos dependentes um do outro. Eu queria viver, mas ao seu lado morria o assistindo morrer. Não tinha forças para partir.

Foi então que pensamos num pacto de morte. Morreríamos de overdose. Mas as drogas só mataram o que havia sobrado de amor. Continuamos nos perdendo e nos ferindo.

Eu tive uma overdose e, ao sobreviver, resolvi fugir. É difícil admitir, mas foi isso que fiz. Ao acordar naquele hospital, senti após anos que estava viva. Num dia frio de setembro, ele se foi. Ele amava o inverno. Sonhava em ver neve. Quando me pego triste pensando nas minhas escolhas, me lembro da única viagem que fizemos juntos. Ushuaia, na Argentina. Fiz um poema em homenagem a este momento.

“Era o fim do mundo / um lugar deserto / E ele estava logo ali. / Viagem infame, destino incerto / A terra era de fogo, mas o gelo nos consumia. / A neve não caiu, apenas lágrimas de melancolia. / Você se foi, eu fiquei. O motivo, não sei. / Escrevo para não esquecer. Quem foi você? / Setembro chegou, trazendo consigo os ventos que repentinamente o levou. / Descanse onde jaz meu bom rapaz. / Tu sempre serás luz na escuridão, diferente na imensidão. Essa terra não lhe merecia, carece de gente boa, de harmonia, por isso sucumbe a cada dia. Segue teu caminho, não olhe pra trás, por onde for leve a tua paz.”

Mesmo seguindo adiante, não há um dia sequer que eu não pense nele. Reconstruí minha vida, conheci uma pessoa maravilhosa, temos um filho lindo. Ao olhá-lo, enquanto dorme, tenho certeza que fiz a escolha certa. Mas não consigo deixar de perguntar por que CD4 cruzou meu caminho. Se eu não tivesse conhecido Otávio, esperado por aquele resultado do exame, como estaria minha vida hoje?

CD4 trabalhava editando vídeos e me ensinou o ofício, que na época levei como hobby. Ele me ajudou a me formar na faculdade. Estava ao meu lado no meu primeiro dia de emprego. Ouvia minhas queixas e sempre tinha ótimos conselhos. Comemorou comigo a primeira de muitas promoções. Ele é parte fundamental do que sou.

Anos após sua morte, comecei a trabalhar com edição de vídeos. Ainda hoje consigo ouvir sua voz me ensinando. É inexplicável. Sinto que o tempo todo ele guiou meus passos.

Eu me chamo Juliana, mas já fui Claire.

Sou estudante de cinema. Borderline. Ex-usuária de drogas. Hoje, mãe e esposa, tentando viver uma vida (quase) normal. Escrevo para lidar com a dor da fuga, e com o peso da culpa.

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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