Cecilia Machado

Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

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O mito do abono

O pobre da nossa sociedade, infelizmente, não recebe o abono

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Há quem diga que quem recebe o abono salarial no Brasil —uma espécie de 14º salário para quem tem carteira assinada e ganha até dois salários mínimos— é pobre. A lógica é contundente, afinal, estamos falando daqueles que recebem até duas parcelas de um valor dito mínimo.

Fosse esse o caso, faria mesmo pouco sentido usar o abono para financiar um programa de transferência de renda mais amplo, conforme recentemente proposto pelo Ministério da Economia.

Mas como definir quem é pobre em uma sociedade? Pode-se compreender a pobreza dentro de algum critério absoluto de bem-estar, relacionado à alimentação, por exemplo, ou dentro de comparação relativa, como renda per capita 50% abaixo da mediana.

A sugestão do Banco Mundial para um país como o Brasil é o valor diário de US$ 5,50 per capita. Em 2018, esse valor correspondeu a R$ 420 per capita ao mês, o que equivale a 44% do salário mínimo naquele ano. Por essa definição, 52,5 milhões de brasileiros —25% da população— são pobres, de acordo com dados da PnadC para o mesmo ano.

Já a renda de dois mínimos, R$ 2.090, corresponde a pouco menos que o valor médio do rendimento do trabalho, R$ 2.315, e não parece satisfazer o critério sugerido pelo Banco Mundial.

A confusão é usual. Afinal, o mínimo virou indexador da pobreza em diversas outras situações, sendo, por exemplo, usado como critério de qualificação do idoso pobre ao BPC (Benefício de Prestação Continuada) —50% do mínimo per capita— assim como o valor do próprio BPC e dos demais benefícios previdenciários (um salário mínimo).

Pelo conceito de renda per capita, o abono não incide onde a pobreza está: a qualificação para o benefício se dá ao longo de toda a distribuição da renda e de forma regressiva. Apenas 16% da incidência do abono se dá entre o terço mais pobre da população, enquanto 39% incidem sobre o terço mais rico, de acordo com dados da PnadC de 2017.

Como distribuir renda a todos não remedia a desigualdade, o abono falha enormemente quando visto sob a ótica de política social. Em perspectiva comparada, 72% do recebimento do programa Bolsa Família se dá no terço inferior da distribuição de renda.

O abono é herança dos tempos em que de fato o salário mínimo caracterizava situação de pobreza. Desde sua criação, muita coisa mudou, como a valorização do salário mínimo, que quase triplicou —em termos reais— a partir da estabilização da inflação, em 1994.

Houve também expressiva formalização da economia e decorrente aumento da qualificação ao abono. Os dois fatores somados são responsáveis pelo crescimento do orçamento dedicado ao abono, que alcança 20 milhões trabalhadores ao valor de R$ 20 bilhões.

De forma mais importante, a regra do abono evidencia o mau e excessivo uso do salário mínimo tanto para políticas de emprego quanto para políticas sociais, em direções contraditórias. Se de um lado o aumento do mínimo aumenta os benefícios da formalização via abono para quem está empregado, de outro aumenta os custos da formalização para quem não tem carteira assinada através do mínimo.

A falta de foco do abono vem do fato de ele ser política assistencial dentro do mercado de trabalho. O abono não incide sobre aqueles que não têm carteira assinada, sobre jovens trabalhadores com menos de cinco anos de registro e nem trabalhadores vinculados a empregadores que são pessoa física. Não contempla informais, menores aprendizes e empregados domésticos.

Pode até ser que o governo queira buscar outras fontes de financiamento —que não o abono— para um programa de transferência de renda mais amplo. As possibilidades são, de fato, muitas.

Mas a opção por outras alternativas não pode mascarar as ineficiências do abono como programa social ou política de emprego. Ele está longe de cumprir papel distributivo ou de criar incentivos inequívocos à formalização do mercado de trabalho. O pobre da nossa sociedade, infelizmente, não recebe o abono.

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