Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Trump está ferido, e seu indiciamento mostra que ele não é mais como antes

Reação do ex-presidente foi recital entediante de sua longa lista de queixas, repleta de mentiras e de ataques pessoais

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The New York Times

Donald Trump captou uma coisa corretamente na terça-feira (4): foi "surreal". Seu indiciamento por acusações criminais foi um show anticlimático, boa parte dele criado por emissoras de televisão sedentas de audiência e o restante criado pelo próprio Trump.

A cobertura total de seus movimentos –do comboio de carros até a pista do aeroporto, a um tribunal de Manhattan e de volta--, completada com tomadas aéreas e narração em tom de suspense, teve por objetivo destacar os acontecimentos do dia como um daqueles momentos na história americana que as pessoas recordam dizendo "me lembro de onde eu estava quando" aconteceu. Inúmeras vezes foi dito que aquele era um dia triste para o país.

Homem idoso loiro atrás de três policiais
O ex-presidente dos EUA Donald Trump chega a tribunal em Manhattan - Ed Jones - 4.abr.23/AFP

Não foi essa minha sensação. Para mim, a impressão foi de que a justiça por muito tempo adiada chegou. Foi de que alguém no sistema de justiça criminal finalmente criou coragem e se esquivou de todas as lamúrias sobre as implicações políticas de se acusar um ex-presidente criminalmente.

Foi um sinal, finalmente, de o sistema de justiça estar fazendo o que podia para operar normalmente, para tratar um ex-presidente como trataria qualquer outro réu, se esforçando para estabelecer com firmeza algo que se assemelhe a equidade e honestidade neste país.

Assim que o indiciamento foi anunciado, começou a consternação em torno da validade e eficácia das acusações: são graves o suficiente para levar ao indiciamento criminal de um ex-presidente? Até que ponto serão vistas como politicamente motivadas? Até que ponto vão ajudar Trump, em vez de prejudicá-lo, quando ele se lança em nova campanha presidencial?

A discussão não se tratou tanto de saber se ele realmente fez o que um grande júri e o promotor Alvin Bragg o acusaram de ter feito, mas de saber se as acusações têm o peso necessário para justificar o momento nacional e a força necessária para resistir a uma defesa vigorosa.

O senador Mitt Romney disse que acusar Trump criminalmente nesse caso "se enquadra numa agenda política". O senador Marco Rubio descreveu o indiciamento como um "veneno" que ultrapassa um limiar do qual é possível que a América não consiga mais voltar.

Mas a realidade é que é Trump quem passou dos limites –é ele a aberração e a nódoa que manchou nossa política e da qual o país precisa se recuperar. Quando argumentam que os promotores estão de alguma maneira rompendo com as convenções ao acusar Trump de ter infringido a lei, alguns republicanos estão tentando colocar camisa de força naqueles que querem cobrar responsabilização de Trump.

Para mim, é essa a parte mais lamentável.

Mas, se vamos atribuir o mesmo peso ao aspecto político que aos aspectos legal e moral, então precisamos considerar também quão completamente Trump se atrapalhou com esse lado das coisas. Em vez de engrandecer-se diante dos eleitores americanos, ele se encolheu, virando um homenzinho pequeno e egocêntrico que não enxerga além de suas próprias motivações mesquinhas.

No final da terça-feira, Trump voltou para Mar-a-Lago para fazer um discurso diante de uma multidão de apoiadores, acompanhado pela TV por boa parte do país.

Uma utilização política inteligente dessa oportunidade teria sido projetar uma imagem de desafio com dignidade, de alguém resoluto em meio a uma tempestade de perseguição, de alguém como qualquer outro cidadão que se encontra numa posição na qual ninguém quer estar.

Em vez disso, seu discurso foi um recital entediante de sua longa lista de queixas, repleta de mentiras e de ataques pessoais contra os promotores em diversas ações que estão sendo movidas contra ele.

Mesmo esses alvos eram previsíveis: Bragg, que apresentou as acusações ligadas ao dinheiro pago para comprar o silêncio de acusadoras; a promotora Fani Willis, do condado de Fulton, na Geórgia, que pode indiciar Trump por interferir na eleição de 2020 em seu estado; e a procuradora-geral de Nova York, Letitia James, que está processando a Organização Trump. São todos negros.

Trump os chamou de racistas. E repetiu a acusação em seu discurso em Mar-a-Lago.

Não é a primeira vez que ele tacha de racistas pessoas negras que o desafiam, mas agora ele parece estar apostando tudo nessa difamação. Na semana passada, no Truth Social (o Twitter de pobres de Trump), ele me chamou de "degenerado doentio" –imagino que seja uma alusão ao fato de eu ser queer—, alegando que eu escrevi que ele deveria ser processado porque é branco.

É evidente que nunca escrevi isso. Trata-se de projeção clássica de Trump: acusar outros de algo do qual ele próprio é culpado –neste caso, racismo.

Trump tem alimentado em sua base a ideia de vitimação dos brancos, e identificar pessoas negras supostamente racistas reforça essa visão. A farsa toda reforçou até que ponto Trump já está obsoleto e como ele é incapaz de se renovar.

Poderíamos dizer que seu indiciamento o reforça tanto entre sua base que pode lhe garantir a candidatura republicana em 2024 –e, se isso ocorrer, que este pode ser o melhor cenário para os democratas.

Mas não importa quanto seus apoiadores possam se reunir para defendê-lo, ele está ferido e mancando. Trump não é mais o que era, e, ao que parece, o país tampouco.

Tradução de Clara Allain

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