Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow
Descrição de chapéu The New York Times

Onda de censura na Flórida de DeSantis evoca a Bíblia dos escravizados

Escola no estado deixou de exibir filme sobre a primeira criança negra a estudar em instituição para brancos no sul dos EUA

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The New York Times

Neste mês, uma escola primária de St. Petersburg, na Flórida, deixou de exibir para os alunos um filme da Disney de 1998 sobre Ruby Bridges, a menina negra de 6 anos de idade que, em 1960, foi matriculada em uma escola primária pública em Nova Orleans. A escola tomou a medida devido à queixa de um único pai —ele diz temer que o filme possa ensinar às crianças que os brancos odeiam os negros.

A escola proibiu o filme até ele passar por uma revisão. Então decidi fazer uma revisão dele, eu mesmo.

Ron DeSantis, governador da Flórida, faz viagem a Iowa - Jonathan Ernst - 10.mar.23/Reuters

Antes de mais nada, repassemos rapidamente a história de Ruby. Quando ela, negra, foi estudar naquela escola, onde todos os outros alunos eram brancos —implementando, assim, a integração racial na escola—, precisou ser escoltada por policiais federais. Ela foi recebida por multidões de racistas brancos –adultos!— zombando dela, xingando-a, cuspindo e ameaçando sua vida. Pais tiraram seus filhos da escola.

Apenas uma professora concordou em ensinar Ruby. Todos os dias aquela menina de 6 anos tinha que ter aulas e almoçar sozinha. Ruby ficou com medo de comer porque um dos manifestantes ameaçou envenená-la. Seu pai perdeu o emprego. A mercearia local pediu para sua família não voltar a fazer suas compras ali.

Tudo isso foi suportado por uma aluna negra da primeira série do ensino fundamental, mas agora um único pai na Flórida acha que essa história é angustiante demais para que alunos da segunda série possam ouvir, ver ou aprender sobre o que aconteceu.

E há mais: de todas as maneiras em que a história de Ruby poderia ter sido relatada, a versão da Disney é a mais generosa. O roteiro inclui a professora branca de Ruby e o psiquiatra branco que a atendeu. No final, outra professora branca e uma aluna branca acabam chegando a alguma forma de aceitação.

O filme é o que se poderia esperar: uma história lamentável sobre um capítulo deplorável de nossa história, relatada com seriedade, com alguns dos detalhes mais escabrosos passados por cima para facilitar a compreensão por crianças.

Mas o que se está buscando na Flórida não é proteger crianças, e sim enganá-las. É combater a chamada doutrinação woke com uma lavagem branqueadora histórica.

O Estado concedeu autoridade extraordinária a pais para agir como soldados rasos nessa campanha. No caso do filme, um único pai apresentando objeção aparentemente é o bastante para que uma lição sobre nossa história recente seja questionada ou mesmo proibida. Vale recordar que Ruby Bridges não é alguma figura do passado distante vista em um livro didático empoeirado, é uma pessoa viva e ativa hoje. Ela é 12 anos mais jovem que a minha mãe.

Este ano, no mesmo distrito escolar, "O Olho mais Azul", de Toni Morrison, foi proibido em todas as escolas de ensino médio da região porque uma mãe reclamou de uma cena de estupro no livro.

Também neste mês uma diretora de escola na Flórida foi pressionada a se demitir depois três pais reclamarem da exibição da estátua de Davi, de Michelangelo –uma figura bíblica!.

Dar a alguns poucos responsáveis tanto poder para tirar opções educativas de outros pais e alunos contraria o espírito da democracia e da liberdade de pesquisa, consagrando uma forma de tirania parental dos hipersensíveis, dos inexplicavelmente ofendidos e dos perversamente opressores.

Tudo isso anuncia uma era de caos nas escolas da Flórida, tudo por conta da quixotesca guerra às ideias woke travada por legisladores estaduais extremistas e pelo governador Ron DeSantis.

O que vai acontecer se essa luva for virada do avesso e pais de alunos minoritários começarem a reclamar do ensino de outros aspectos da história e cultura americana?

O que vai acontecer se eles rejeitaram as aulas ou os livros sobre Thomas Jefferson, porque ele estuprou uma garota adolescente que escravizara, Sally Hemings, e foi o pai dos filhos dela, incluindo um que nasceu quando ela própria ainda era criança? (Quero registrar aqui que considero estupro todas as relações sexuais entre escravizadores e aqueles que eles escravizaram, porque era impossível para os escravizados darem seu consentimento.)

Como vai ficar se um pai apresentar uma objeção à comemoração do Dia de Colombo, porque Cristóvão Colombo foi um colonizador maníaco que vendeu meninas para serem escravas sexuais?

O que vai acontecer se pais fizerem objeção a livros sobre o Dia de Ação de Graças porque a primeira representação dessa celebração como um encontro entre amigos para compartilhar sua fartura e superar suas diferenças é puro conto de fadas?

E se eles fizerem objeção à própria Bíblia, que inclui estupro, incesto, tortura e assassinato?

A história é cheia de acontecimentos horríveis. Não fazemos nenhum favor a nós mesmos ou aos nossos filhos se fingirmos que não é o caso.

Aprender sobre a crueldade humana é necessariamente incômodo. É nesse desconforto que nossa empatia se revela e nosso senso de justiça é despertado.

Essas discussões continuam girando em torno do desconforto de crianças brancas, mas parecem ignorar os sentimentos de crianças negras, sejam de desconforto ou outros.

Assistindo ao filme e revendo a história de Ruby Bridges, me senti incrivelmente incomodado, às vezes furioso, e em alguns momentos quase chorei.

Como aquilo pôde acontecer? Como honramos aquele momento, condenando a crueldade dos racistas e exaltando a coragem de Ruby? E como enfocamos o efeito da discriminação racial nos EUA?

Se um retrato preciso do racismo e crueldade brancos é um critério pelo qual materiais educacionais podem ser proibidos, como é possível o ensino verdadeiro e pleno da história americana?

Talvez o que se busque seja exatamente a distorção. É a ressurreição da Causa Perdida, ideologia negacionista que escreve uma história revisionista de modo a reabilitar os racistas do sul do país.

Para mim, a onda de censura que estamos testemunhando também evoca a chamada Bíblia dos escravizados –uma versão resumida da Bíblia usada nas Índias Ocidentais no início do século 19 para tentar pacificar os escravizados. Os trechos que evocam a libertação foram cortados, e foram mantidos trechos que apoiam a escravidão. Foi uma ferramenta de guerra psicológica disfarçada de escritura sagrada.

A Flórida de DeSantis está travando uma guerra psicológica semelhante. Seus campos de batalha são a raça, o gênero e a sexualidade, e ela está bombardeando as narrativas inclusivas.

Os censores cruzadistas do Estado estão optando pela ignorância cômoda em vez da verdade inconveniente.

Tradução de Clara Allain

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