Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow

Documento que formaliza nova acusação contra Trump é leitura obrigatória

Texto é história real e angustiante de como um ex-presidente empurrou a democracia para perigosamente perto do despenhadeiro

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The New York Times

A acusação federal emitida contra Donald Trump por suas tentativas de roubar a eleição presidencial de 2020 tem uma qualidade literária. Parecem um roteiro de filme.

Muito do que contém são informações que já sabíamos, mas vale a pena notar que o documento é ao mesmo tempo abrangente e simplificado, com um protagonista claro, Trump, como uma força obscura, conspiradora e maligna, semeando caos e destruição.

Isso torna digerível este momento sem precedentes na história americana e restabelece a tensão que todos devemos admitir sobre a magnitude do que aconteceu após a última eleição: Trump empreendeu uma das tentativas de supressão de votos mais abrangentes e graves da história do país.

Olho de câmera focaliza Donald Trump durante evento da campanha presidencial de 2016
Donald Trump durante evento da campanha presidencial de 2016, na Universidade Estadual de Youngstown, em Ohio - 15.ago.16/New York Times

A acusação é a história real e angustiante de como um ex-presidente empurrou nossa democracia para perigosamente perto do despenhadeiro e continua ameaçando derrubá-la.

Consumidores ávidos de notícias e aqueles de nós no setor jornalístico podem ficar indiferentes a esse tipo de desenvolvimento. Nós acompanhamos as revelações em tempo real. Lemos as reportagens e os livros enquanto eles são escritos. Assistimos a entrevistas na televisão e ouvimos podcasts. Para nós, a acusação pode parecer anticlimática, apenas um pouco abaixo das linhas judiciais e políticas dispostas em paralelo como trilhos de trem.

Mas no meio da nossa abordagem ao mesmo tempo gradual e urgente, com nosso apetite por detalhes e por ver o todo, nós, caçadores de notícias, às vezes perdemos a perspectiva do cidadão comum.

A maioria das pessoas não acompanha cada passo de uma reportagem, não porque não estejam interessadas, mas porque estão distraídas. Suas vidas estão acontecendo. Elas estão tentando pegar um café para tomar a caminho do trabalho, preocupadas com o pagamento do aluguel, tentando lembrar se assinaram o bilhete autorizando o passeio das crianças na escola e olhando nervosamente para o tanque de gasolina à medida que o combustível chega ao fim.

Por essa razão, o resumo absorvível –e bastante absorvente– que a acusação representa é crucial. Entre outras virtudes, ela não está escrita em juridiquês. É um drama que põe os leitores dentro do pensamento de Trump. Isso permite que eles vejam não apenas as mentiras que o ex-presidente é acusado de contar, mas também como ele viu as coisas que disse no momento em que as disse.

As pessoas costumam falar que Trump mente para se vangloriar e que tem sede das mentiras alheias que têm como objetivo lisonjeá-lo. Tudo verdade, mas essa categoria de mentiras está no extremo frívolo do espectro.

O processo o acusa de outra categoria de mentira: tentar obrigar os outros a agirem em seu nome. Isso destaca a propensão refinada do republicano para enganar.

O texto argumenta de modo convincente que Trump não foi enganado por minions que alimentavam sua vaidade, mas sim foi calculista, contando mentiras que, ele acreditava, pressionariam esses lacaios a agir em favor dele. Ele parecia estar constantemente examinando a sala, procurando quais confidentes estavam oferecendo as invenções mais úteis, aqueles dispostos a se comprometer com sua loucura de negar o resultado da eleição, os kamikazes de narrativas falsas.

 Chop Somodevilla/Getty Images via AFP
Manifestante contra o ex-presidente Donald Trump protesta em frente ao tribunal no qual o republicano se apresentou à Justiça, em Washington - Chop Somodevilla/Getty Images via AFP

Trump usou a mentira de que ele e seus apoiadores estavam sofrendo um ataque ilegal para justificar um contra-ataque, a qualquer custo. Em 6 de janeiro de 2021, ele instruiu seus apoiadores a invadirem o Capitólio, implorando aos republicanos que "endurecessem" e deixassem de lado as regras, dizendo: "E a fraude destrói tudo, não é? Quando você pega alguém numa fraude, você pode seguir regras muito diferentes".

Naquele dia, Trump mentiu repetidamente ao afirmar que a fraude levou à sua derrota.

O processo também ilustra como Trump ligou o destino de outras pessoas ao seu, criando uma dependência, uma simbiose, tornando separar-se dele algo perigoso. Para aqueles que o apoiam, defender o ex-presidente virou uma forma de autodefesa.

Existe um fenômeno biológico conhecido como parasitismo, uma relação em que um parasita se beneficia enquanto seu hospedeiro é prejudicado. Essa é a relação que muitos republicanos –tanto os políticos do partido quanto os eleitores que apoiam a sigla– têm com Trump. Mas eles cortejaram sua própria infecção.

Trump é o claro vilão desta história, mas, para seus seguidores, a vilania é subjetiva.

No livro "Hero on a Mission" (herói em uma missão, em inglês), de Donald Miller, ele postula que, na ficção, tanto heróis quanto vilões têm um passado semelhante: ambos começam como vítimas. O que os separa é como processam sua dor, diz o autor.

Trump é o herói do "Mundo de Trump" porque espelha e amplifica a psique coletiva de seus devotos. Ele processa a dor –muitas vezes de sua própria invenção– infligindo-a. Ele anseia por vingança. Ele corteja a crueldade. Ele desrespeita as regras.

Na acusação, são alguns dos personagens secundários –as autoridades de Estado, membros da equipe de campanha e advogados da Casa Branca que se opuseram à conspiração de Trump– que surgem como os anti-heróis, fornecendo grande parte das evidências contra o ex-presidente.

De acordo com a acusação, as teorias da conspiração "irradiaram da nave-mãe para baixo".

A acusação não é uma leitura agradável, mas é surpreendentemente legível. Não é entretenimento, mas um documento de leitura obrigatória que detalha uma das ameaças mais graves que o país já enfrentou por parte de um presidente.

Ela não fará as pessoas mudarem de ideia ou alterará significativamente as trajetórias políticas. Mas apresenta um caso claro e convincente, e isso por si só é um serviço ao país.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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