Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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DeSantis ataca história afro-americana em sua cruzada nacionalista cristã

Rival de Trump no Partido Republicano tenta liderar grupo que usa linguagem evangélica para ocultar lealdades etnocêntricas

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The New York Times

A Flórida aprovou na semana passada uma revisão dos padrões de ensino de história afro-americana. Pelas novas diretrizes, os alunos do ensino médio devem ser ensinados que "os escravos desenvolveram habilidades que, em alguns casos, podiam ser aplicadas para seu benefício pessoal".

Houve reações de fúria, incluindo da vice-presidente Kamala Harris, que criticou os padrões, dizendo implacavelmente: "Nos insultam em uma tentativa de nos submeter a gaslighting".

O pré-candidato à Presidência do Partido Republicano Ron DeSantis fala durante comício de campanha - Brandon Bell - 26.jun.23/Getty Images via AFP

Ela tem razão. Mas o projeto empreendido na Flórida é muito mais amplo do que muitos compreendem —e com consequências muito maiores. O insulto às pessoas negras e ao país é incidental.

Assim como Donald Trump se fez conhecer como o líder nacionalista branco da América, o governador da Flórida, Ron DeSantis, tenta se estabelecer como o líder nacionalista cristão do país. O nacionalismo cristão é um subconjunto da supremacia branca que alega que Deus ordenou que a América seja uma nação cristã e que seus ideais devem ser protegidos contra o pluralismo –racial, religioso ou outro.

Em fevereiro de 2022, em discurso no Hillsdale College, escola particular cristã em Michigan, DeSantis disse: "Vistam a armadura de Deus. Resistam às tramóias da esquerda. Vocês enfrentarão flechas em chamas, mas, se tiverem o escudo da fé, vocês as derrotarão, e nós na Flórida seguimos esse caminho."

Em novembro, DeSantis divulgou um anúncio político em que o locutor fala aos berros: "No oitavo dia, Deus olhou para seu paraíso planejado e disse: ‘Preciso de um protetor’". O anúncio transmite a ideia de que ele é esse protetor –o guerreiro cristão da política americana. Está quase parecendo que DeSantis, o rival mais próximo de Trump para a indicação presidencial republicana, está apostando na possibilidade de os nacionalistas cristãos fazerem parte de uma categoria distinta de eleitores. Mas Trump já os capturou, especialmente depois de nomear três juízes conservadores para a Suprema Corte.

Além disso, o vocabulário do nacionalismo cristão frequentemente é pedante demais, mesmo para pessoas que seguem as filosofias na prática, para fazer DeSantis ultrapassar Trump.

Uma sondagem divulgada em outubro pelo Pew Research Center constatou que a maioria dos adultos americanos nunca ouvira falar nada de nacionalismo cristão e que quase um em cada dez que ouviram "pelo menos um pouco" não sabia o suficiente para aventar uma opinião.

Uma entrevistada na pesquisa descreveu o nacionalismo cristão como "cristãos patriotas que creem em Deus, na família, no país, na moral e na bondade". E desconfio que muitas pessoas pensem nos nacionalistas cristãos como sendo simplesmente pessoas brancas patrióticas que frequentam a igreja –semelhante à definição de nacionalismo branco na qual o senador republicano Tommy Tuberville, do estado do Alabama, estava tentando recentemente fazer as pessoas acreditarem.

Só que o nacionalismo cristão não é meramente "cristãos patrióticos" e não é cristianismo, mas sim, como disse o sociólogo da Universidade do Oklahoma Samuel Perry, "um cristianismo impostor que utiliza a linguagem evangélica para ocultar lealdades etnocêntricas e nacionalistas".

E DeSantis é um paradigma dos impostores. Sua cruzada anti-woke é uma manifestação da intolerância e da atitude beligerante do nacionalismo cristão, e a distorção da história negra feita pela Flórida, com sua tentativa de reabilitar a imagem da escravidão, faz parte disso.

Donald Yacovone, do Centro Hutchins de Pesquisas Africanas e Afro-Americanas, de Harvard, estudou dezenas de livros didáticos dos séculos 19 e 20 para escrever "Teaching White Supremacy: America’s Democratic Ordeal and the Forging of Our National Identity" (ensinando a supremacia branca: a experiência democrática penosa da América e a formação de nossa identidade nacional).

Como ele me disse na quarta-feira (26), os livros didáticos americanos, especialmente os que foram publicados antes da metade do século 20, são notórios por estarem cheios da ideia de que "pessoas de origem africana foram trazidas para a América como um ato de benevolência por parte dos brancos".

Segundo esses relatos distorcidos, a escravidão foi um trabalho missionário que colocou bárbaros pagãos negros em contato com a cristandade e a civilização dos brancos. Alguns desses livros cometeram o desplante escandaloso de caracterizar os escravizados como principais beneficiários da escravidão, enquanto os brancos eram retratados como tendo sido obrigados a arcar com o ônus disso. Alguns livros chegaram a minimizar os horrores e as mortes em massa da travessia dos navios negreiros pelo Atlântico.

Essa visão de mundo nunca chegou a desaparecer por completo. Uma análise de livros didáticos americanos feita pelo jornal britânico The Guardian em 2021 constatou que "escolas particulares, especialmente cristãs, usam livros didáticos que relatam uma versão da história que é racialmente enviesada e em muitos casos equivocada", incluindo livros que "branqueiam o legado da escravidão".

É uma abordagem educacional furtiva que pessoas como DeSantis querem consagrar como a abordagem dominante. As diretrizes da Flórida caracterizam a escravidão como um campo de treinamento benéfico, uma espécie de escola, e é assim que muitos gostariam de aludir a ela. Um grande perigo disso, claro, é que as pessoas oprimidas por essa noção acabem por absorvê-la.

Na autobiografia "Up from Slavery" ("Memórias de um Negro Americano", com tradução de Graciliano Ramos), Booker T. Washington escreveu: "Devemos reconhecer que, não obstante a crueldade e o erro moral da escravidão, os 10 milhões de negros que habitam este país, que eles próprios ou cujos ancestrais passaram pela escola da escravidão, estão em condição mais forte e esperançosa, material, intelectual, moral e religiosamente, do que é o de um número igual de negros em qualquer outro lugar do globo".

DeSantis e outros conservadores se queixam constantemente de doutrinação, mas doutrinação, criação de mitos políticos, é precisamente o que o nacionalismo cristão quer fazer.

Insultar pessoas negras pode ser um efeito, mas não é o objetivo final. Como me disse Anthea Butler, professora de estudos religiosos na Universidade da Pensilvânia e autora de "White Evangelical Racism: The Politics of Morality in America" (racismo evangélico branco: a política da moralidade na América), os cristãos nacionalistas não estão interessados em insultar pessoas negras: estão numa missão para estabelecer "uma pretensão de ingenuidade" para absorver a branquitude de culpa.

Nas palavras dela, "nós não passamos de joguetes na narrativa deles de como querem criar ‘grandeza’".

Tradução de Clara Allain

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