Clarissa Gross

Doutora pela Faculdade de Direito da USP e Coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia (PLED) da FGV Direito SP

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Clarissa Gross

Que honra é essa?

A linguagem engana: nem sempre quando dizemos que alguém 'é' ou 'faz' algo estamos a lhe imputar um fato

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Hélio Schwartsman escreveu recentemente que torcia para que o quadro de Covid-19 de Bolsonaro se agravasse e o presidente viesse a óbito. O texto veiculando desejo expresso e explícito de morte causou comoção pública e levou o Ministro da Justiça a pedir abertura de inquérito policial para investigar Schwartsman por crime previsto no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional.

Schwartsman não cometeu crime algum, e o episódio ilustra confusões conceituais importantes em torno da liberdade de expressão. O artigo 26 da Lei de Segurança Nacional afirma que o crime se aperfeiçoa com imputação de “fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. No desejo expresso da morte de outrem não há atribuição de fato a ninguém. O que explica que tenha sido tão facilmente associado aos crimes de calúnia e difamação?

A minha hipótese é a de que o debate público no Brasil lida muito mal com o discurso de conteúdo ofensivo. O direito brasileiro ainda não foi capaz de comunicar que se sentir ofendido com o que pensam os outros não justifica por si só o silenciamento. Os crimes de calúnia e difamação exigem de forma clara a imputação de fato a alguém. Essa exigência, no entanto, parece obliterada pelo caráter ofensivo dos desejos de Schwartsman.

É interessante que o próprio Schwartsman parece se confundir. Ele rechaçou a investigação argumentando que não teria “acionado nenhuma alavanca” (em menção à “trolleyology”) para tirar a vida do presidente, e que o vírus é indiferente aos seus desejos. Como se a defesa contra calúnia e difamação dependesse de mostrar que não tinha atentado concretamente contra a vida de Bolsonaro, ou de que não é possível incitar um vírus.

Enquanto isso, outros elementos do seu primeiro texto se aproximavam mais de calúnia e difamação do ponto de vista técnico. Schwartsman afirmou que Bolsonaro minimiza a epidemia e sabota medidas para mitigá-la. São proposições menos ofensivas do que o desejo de óbito, mas que mais se aproximam a imputações de “fato ofensivo à reputação”. Esse discurso, no entanto, emite juízo de valor sobre as condutas de Bolsonaro. É crítica política que segue dentro da lei. Schwartsman não foi o primeiro e nem será o último a externá-la.

Calúnia e difamação, crimes pensados para proteger a honra, não protegem de todo e qualquer discurso que possa ofender o ouvinte. Tampouco protegem contra a crítica política. A linguagem engana: nem sempre quando dizemos que alguém “é” ou “faz” alguma coisa estamos a lhe imputar um fato. Pode ser apenas a forma de expressar opinião.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.