Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Prefiro saudades de Dilma à dos militares

Locaute/greve faz emergir louvação a anos sombrios

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Caminhoneiros fazem, em frente ao Palácio do Planalto, manifestação de apoio à greve do setor e pedem intervenção militar
Caminhoneiros fazem, em frente ao Palácio do Planalto, manifestação de apoio à greve do setor e pedem intervenção militar - Pedro Ladeira - 27.mai.2018/Folhapress

Minha queridíssima Argentina me vem à memória ao acompanhar o locaute das empresas de transporte, camuflado em uma greve de caminhoneiros autônomos (que também houve, mas é minoritária, por ser minoritária a participação dos autônomos no transporte de carga).

Na Argentina, a ditadura de turno decidiu afastar-se, em 1973, e chamar eleições, apesar de saber que o peronismo venceria, como quase sempre acontece. Foi o que ocorreu. Na posse de Héctor Cámpora, o dentista que fez as vezes de candidato no lugar do general Juan Domingo Perón, ainda inabilitado, houve uma tremenda festa popular. A Junta Militar da época, liderada pelo general Alejandro Agustín Lanusse, foi, mais que vaiada, cuspida em praça pública.

Muito bem, na voragem com que vivem os argentinos, Cámpora logo renunciou, Perón recuperou os direitos políticos, ganhou a eleição seguinte, naquele mesmo 1973, morreu em 1974, ascendeu sua vice (e mulher), María Isabel Martínez de Perón, a Isabelita.

O governo de Isabelita foi um tremendo fracasso. Tanto que, já em 1975, muros de Buenos Aires apareceram pichados com a frase “Lanusse, volvé, te perdonamos".

“Volvé” corresponde a “vuelve” (volte) no peculiar acento portenho.

Temo que, assistindo à patética exibição de incompetência do governo Temer nesse episódio dos caminhoneiros, alguém pinte um muro no Brasil, com “Dilma, volta, te perdoamos".

Pensando bem, no Brasil, está sendo pior: ninguém está com saudades de Dilma, mas uma parte assustadora da sociedade, está com saudades da ditadura militar.

Os pedidos de intervenção militar que apareceram pintados aqui e ali, durante o locaute/greve, podem ser equiparados à pichação de 1975 na Argentina. É como se uma parte do público gritasse: “Volta, Figueiredo, te perdoamos".

Sinal de uma profunda desorganização política. Um governo, o de Temer, fracassa (para o meu gosto, já nasceu fracassado), mas ninguém tem saudades de sua antecessora, pela simples e boa razão de que ela também fracassou, ao provocar a maior recessão da história.

Com isso, o que surgiu foi uma espécie de versão tupiniquim do culto à ditadura, que, na Argentina, era apenas o exercício de uma ironia carregada de melancolia, bem típica do portenho. No Brasil, pela primeira vez na história eleitoral da democracia reconquistada em 1985, há um candidato que defende a ditadura, elogia a tortura, louva torturadores.

A greve/locaute serviu para dar maior visibilidade a esse fantasma, preexistente.

Para fechar a história, lembro que Lanusse não voltou em pessoa, mas os militares voltaram, em 1976, impuseram uma ditadura que semeou mortes, torturas, desaparecimentos, banimentos, exílios, um banho de sangue sem paralelos mesmo em uma história tão cheia de traumas como a da Argentina (e da América Latina). A ditadura brasileira cometeu crimes semelhantes.

Prefiro ter saudades de Dilma e de todos os presidentes da democracia.
 

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