Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Clóvis Rossi

Papa Francisco reabilita padre perseguido pela ditadura da Nicarágua

Ernesto Cardenal foi integrante da Teologia da Libertação, combatida por João Paulo 2º

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O sacerdote Ernesto Cardenal, durante discurso em Manágua em 2005 - Miguel Alvarez - 13.mar.2005/AFP

O velho sábio que habitava esta Folha costumava repetir que vivera o suficiente para ver tudo acontecer e o seu contrário também. Se conhecesse essa frase, o padre nicaraguense Ernesto Cardenal a repetiria, com uma modificação essencial: não só viu tudo acontecer e o contrário também, mas viveu duas mortes e sobreviveu a ambas.

A primeira morte foi decretada em 1984 pelo então papa João Paulo 2º, que o afastou da igreja, após um episódio de brutal humilhação pública no ano anterior.

Cardenal, um expoente da Teologia da Libertação, mergulhara fundo na guerra que a Frente Sandinista de Libertação Nacional movia contra a ditadura da dinastia Somoza. Quando a revolução triunfou, Cardenal foi nomeado ministro da Cultura.

Foi nessa condição que estava no aeroporto para receber o papa, em visita à Nicarágua, em março de 1983. Juan Arias, notável jornalista, hoje correspondente de El País no Brasil, cobria a visita e recordou o episódio na edição deste domingo (17) do jornal espanhol: “Quando o papa se aproximou, Cardenal ajoelhou-se e tomou sua mão para beijá-la. João Paulo 2º tirou a mão e, quando o sacerdote lhe pediu a bênção, o papa, apontando um ameaçador dedo indicador da mão direita, lhe disse que antes teria que reconciliar-se com a igreja".

A igreja jamais permitiu a reconciliação até porque o longo papado de João Paulo 2º foi dedicado a eliminar a Teologia da Libertação. Conseguiu.

Cardenal, depõe Arias, foi desterrado, mas jamais saiu da igreja: “Sempre esteve dentro, como cristão e como sacerdote".

Foi preciso o cardeal argentino Jorge Bergoglio assumir, como papa Francisco, para que a igreja ressuscitasse Cardenal. Há dez dias, o bispo auxiliar de Manágua, Silvio José Baez, foi ao hospital em que Cardenal, 94, tenta recuperar-se de grave infecção renal, ajoelhou-se ao pé da cama e disse: “Peço sua bênção como sacerdote da igreja católica".

Todo um gesto para confirmar que o papa levantara a morte sacerdotal imposta 35 anos antes.

Que tenha sido Baez o agente da notícia é revelador da outra morte que tentaram impor a Cardenal, esta pelos usurpadores da revolução libertária pela qual lutara: Baez é, talvez, a mais importante voz a denunciar a ditadura para a qual resvalou o sandinismo sob o casal Daniel Ortega e Rosário Murillo.

Desde que Ortega voltou ao poder em 2007, passou a perseguir Cardenal, usando, entre outros meios, a mão pesada do sistema judicial, sob controle do casal Daniel/Rosário: em fevereiro de 2017, notificou Cardenal de que deveria pagar uma multa de US$ 800 mil (R$ 2,9 milhões), por supostos danos e prejuízos em disputa relacionada à posse de terrenos em Solentiname. Foi lá que Cardenal fundou sua comunidade de pescadores, camponeses e artistas primitivistas.

Cardenal denunciou a multa como o que de fato é: perseguição política “por parte do governo de Daniel Ortega e de sua mulher, que são donos de todo o país, até da justiça, da polícia e do exército. Mais não posso dizer, porque esta é uma ditadura", afirmou em entrevista a El País.

Esta segunda morte, agora política e não eclesial, talvez seja compensada pelo retorno à igreja, cuja cúpula o afastou porque o sacerdote acreditava que, “entre cristianismo e revolução, não há contradição”, como cantava a multidão que recebeu João Paulo 2º em Manágua faz 36 anos.

Pena que, ao voltar à igreja, Cardenal não possa também voltar à revolução porque esta foi corrompida e violentada.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.