Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Estado de intimidação: o milicartismo te vigia

O comitê de atividades antibrasileiras sabe quem és, o que fazes e pode te processar

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Não há liberdade onde há medo, mesmo que a Constituição garanta sermos livres. O medo pode ser espontâneo, irracional, traço de personalidade. Para isso há terapia, entre outras coisas. Mas o medo pode ser fabricado desde fora, por ação deliberada do Estado e da sociedade.

Quando Estado e sociedade mergulham no vigilantismo e denuncismo, por vias policialescas, judicialescas ou milicianescas, ingressamos num estado de intimidação. Nesse regime de exceção das liberdades, intimidação é política pública e prática privada organizada, incentivada pelo próprio Estado.

O alvo reúne pessoas para quem a liberdade é constitutiva do que fazem: jornalista, professor, cientista, escritor, sociedade civil. Diferente de um engenheiro, contador ou ortopedista, que gozam de liberdade profissional genérica, essas atividades recebem liberdades constitucionais específicas: de imprensa, acadêmica, científica, artística, de associação e protesto. Podem assim incomodar sem o ônus do heroísmo e retaliação aguda.

E incomodam. Governos ao estilo bolsonarista partem para cima. Bolsonaro escalou quatro cães de guarda na cúpula para a política de intimidação estatal: procurador-geral da República, ministro da Justiça, advogado-geral da União e o serviço de superinteligência do general Heleno. Promotores, juízes e policiais ficam na retaguarda. Bolsonaristas da esquina fazem o resto do serviço sujo.

Um estado de intimidação emerge dessa miscelânea de casos: PGR pede a jornalista que entregue relatório da Abin; Abin monitora "maus brasileiros" em conferência do clima; PGR solicita à OAB sancionar advogado que pede investigação contra Damares; ministérios montam dossiês de "antifascistas" e "detratores"; AGU interpela críticos do ministro Salles; burocracias e até policiais operam em clima de apreensão com receio de delatores detectarem sinais de antagonismo.

Bolsonaro incita polícia contra a imprensa; MJ instaura inquérito sigiloso contra advogado e jornalistas que criticam presidente; Exército solicita retratação de revista contra afirmação de responsabilidade militar por mortes; profissão médica é assediada a receitar remédio sem recomendação científica; promotora interpela prefeitura por celebração do Dia da mulher com "layout comunista".

Na educação e na pesquisa, professor universitário assina termo de ajustamento de conduta por "desapreço" ao presidente; estudante é preso por frase irônica em rede social; Ipea exige autorização para publicação de estudos; proliferam movimentos por criação de disque-denúncia em escolas e universidades; comissão do Enem sugere troca do termo "ditadura" por "regime militar". Na cultura, fomento das artes se submete a filtro político.

Não é só do Estado que vem a intimidação. O Judiciário funciona como marionete muito funcional para autoritários. Coletivo de "advogados conservadores" se oferece para processar quem ofende presidente. Figuras públicas como Patrícia Campos Mello, Felipe Neto e Debora Diniz são ameaçadas por torrente de ódio nas redes e por ações judiciais.

Pastores da Igreja Universal praticam litigância intimidatória contra escritor João P. Cuenca. Por frase dita em rede social, sofre mais de cem ações idênticas pulverizadas pelos cantos do país, estratégia também usada contra a jornalista Elvira Lobato, anos atrás.

Muita gente, por hesitação cognitiva e cordialidade retórica, prefere tratar palavras com luva de pelica e evitar os signos de maior ignomínia moral e política do século 20, como fascismo e genocídio, ou conceitos graves como estado de exceção. Ainda não fecharam seu vocabulário para balanço.

Obsessivos na procura por "instituições funcionando", não avaliam o "como". Formalidades jurídicas bastam para provar sua tese presumida. O Diário Oficial, de fato, parece estar funcionando. Talvez se convençam, pelo menos, que ingressamos num estado de intimidação e autocensura, um estado de exceção constitucional com grãos de açúcar.

O milicartismo produz névoa de incerteza que te faz pensar várias vezes antes de praticar os compromissos elementares da tua profissão, se tua profissão não tiver por vocação prestar homenagem ao governo de turno. Não é receio de constrangimento ordinário, mas medo de prisão, ruína econômica e pessoal. Milicartismo é o que temos no horizonte.

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